terça-feira, 16 de novembro de 2010

O trio

O trio acabou de se conhecer, mas parece íntimo há um bom tempo. Gozam daquela intimidade espontânea que surge na boemia da Augusta, onde todos se conhecem profundamente mesmo tendo se visto pela primeira vez há cinco minutos. A Augusta seria o paraíso dos tímidos extremos se eles resolvessem se aventurar por esses submundos da sinceridade. No caótico fervor da rua, amizades e amores surgem nas esquinas ou nas mesas dos bares e, em minutos, se vão como garrafas de cerveja que retornam ao balcão. 

*Mais um trecho do livro-reportagem. 

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

República das putas

Jéssica parece uma boneca, uma boneca ingênua, daquelas que transmitem alegria pelo buraco da boca, mas que guardam dentro de si um perigo mortal: talvez uma faca ou uma paixão doentia. Não é difícil imaginar o porquê de ela fazer tanto sucesso entre os homens com mais de 40 anos. Jéssica os conquista com aquela beleza doce mas ao mesmo tempo fria, uma beleza que faz com que eles se lembrem de seus áureos tempos de escola, do primeiro sexo, da dificuldade em penetrar a namorada virgem, da alegria contida em ver um seio pela primeira vez, da ingenuidade.

*Trecho do livro-reportagem que estou escrevendo. Jéssica é uma prostituta da Rua Augusta. 

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Eu, derrotado

Para um derrotado contumaz, os livros de auto-ajuda fazem todo o sentido. Os autores dessas obras se aproveitam da nossa ingenuidade em acreditar que, amanhã ou em algum momento no futuro, as coisas vão dar certo. Se fracassamos ontem e hoje, alguma força do universo (ou em nós mesmos) nos fará vencer amanhã. É uma questão de tempo e de paciência. 

O torcedor de futebol é, antes de tudo, um grande apaixonado pelo fracasso. Ninguém convive tão bem com a frustração e com a derrota como um bom torcedor de futebol. Mesmo chutada pra longe por um atacante caneludo, a esperança da vitória nunca abandona o estádio; ela sempre está ali, renascendo a cada apito inicial do juiz. Ouso dizer que são as derrotas (e não as vitórias) que fazem aumentar o amor por um clube.

Para mim, a maior derrota do meu time aconteceu há mais 10 anos, em julho de 2000. Eu não passava de um pivete metido a besta. Entendia tudo de futebol: das formações táticas, dos tipos de chuteira, da história gloriosa e dos ídolos que eu só conhecia pelos pôsteres colados na parede da sala. 

O jogo era entre São Paulo e Cruzeiro pela final da Copa do Brasil. A partida seria difícil, pois era fora de casa e o tricolor tinha empatado o primeiro duelo, no estádio do Morumbi. Para sermos campeões, precisávamos ganhar ou empatar por 1x1.

Antes de começar o jogo, o meu vizinho, um autêntico corintiano, me provocou. Não se sabe como, ele conseguiu uma enorme bandeira do Cruzeiro e a colocou em sua janela, que, infelizmente, dá de frente para a minha. Segundo meu vizinho, o Cruzeiro ganharia fácil. Ele quis até apostar, mas, como sempre achei que essa coisa de aposta sempre dá azar, não aceitei. 

Minha mãe era outra que aderiu a causa celeste. Ela é mineira e, por isso, resolveu que o Cruzeiro merecia o seu apoio. É de se indignar, né? Como uma mãe abandona o filho numa situação dessas para dar lugar ao bairrismo do pão de queijo? Na minha casa, eu estava sozinho. 

O primeiro tempo terminou zerado. O jogo estava truncado, pra não dizer feio. Fiquei nervoso, como era de se esperar. Durante intervalo fui tomar um banho, somo sempre faço, para esfriar a ansiedade. Não há nada mais chato que intervalo de jogo de futebol. 

No segundo tempo, o São Paulo marcou um bonito gol de falta. Comemorei como um louco: subi no parapeito da janela e comecei a xingar toda a árvore genealógica do meu vizinho corintiano. Seríamos campeões, cara! Faltavam 10 minutos para o final do jogo e o Cruzeiro precisava virar. O empate era nosso.

Aos 36, o time azul empatou e a luz amarela se acendeu entre os torcedores do São Paulo. Mesmo assim, precisávamos apenas segurar mais alguns minutos e seríamos campeões. 

Aos 43, o Cruzeiro conseguiu uma falta perigosíssima na entrada da área. Se você for torcedor fanático de algum time, conhece aquele pressentimento que bate segundos antes da coisa ir pro limbo. Por algum acaso do universo, nós sabemos que a vaca vai pro brejo antes mesmo do primeiro passo. Foi isso que senti nos segundos que antecederam aquela falta. 

O jogador do Cruzeiro chutou. A bola nem foi tão forte assim, mas desviou na barreira e entrou no canto direito do goleiro. Pronto, o mundo acabou ali, fiquei péssimo. O fracasso do  time é sempre  mais nosso que dos jogadores, né? Na vitória, comemoramos em grupo; a derrota é individual. Naquele dia,  principal derrotado era eu.

Meu vizinho apareceu na janela, gritando como um porco. Minha mãe mandou a frase de consolação, algo como “na próxima vocês ganham”. Sim, a gente sempre espera pela próxima.

A esperança continua em campo.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Leandro Machado prefere a terceira pessoa

Nascido no glorioso fevereiro de 1989, Leandro Machado se orgulha de ser um dos poucos remanescentes dos anos 80 ainda em atividade. “Quando nasci, o Bon Jovi ainda usava cabelo grande”, conta. Morador da Zona Leste de São Paulo, ele se admira ao conhecer pessoas que não sabem que o mundo já foi dividido por um Muro de Berlim. “Na minha época só se falava nisso”, diz.

Leandro começou cedo na militância política: contrariando as ideias conservadoras de seu pai, que ainda acreditava no poder supremo de Paulo Maluf, o rapaz se decidiu pelo comunismo aos dez anos de idade. Por isso, ao ter de escolher entre o azul e o vermelho, ficava sempre com o encarnado. “O meu Power Ranger preferido sempre foi o vermelho, por exemplo”, diz.

É claro que, ao se sentar no troninho de poder que seus pais lhe deram a seguir, Leandro deu adeus às armas e se rendeu aos prazeres do McLanche Feliz. O que era o Power Ranger vermelho ao lado de uma coca-cola com hambúrguer?

Aos onze anos, o rapaz começou a pensar em sua carreira. “A ideia de um mundo cheio de monstros gigantes nunca me saiu da cabeça”, conta. Leandro escolheu salvar o mundo sendo policial, bombeiro, Bruce Willis, motorista de ambulância ou Cavaleiro do Zodíaco. O mercado não o absorveu, infelizmente. “A culpa não foi minha”, conta o garoto, lembrando que a culpa das mazelas do mundo deve sempre cair sobre os ombros da Igreja, do sistema ou do José Dirceu.

Leandro logo percebeu que nunca tivera vocação para herói. “De super, só tenho o superego”, define, puxando um bloquinho para anotar a própria frase. Na verdade, o garoto decidiu apenas trocar a armadura por uma guitarra velha. Tornou-se roqueiro e um rebelde com calça (“jeans e regada”, lembra).

Três acordes, letras engajadas e um all star velho. “Era incrível como, naquela época, tudo cheirava a espírito jovem”, diz. Compôs diversas músicas – todas reivindicando a liberdade dos alunos, frente à repressão da diretora da escola onde estudava. “Ela nunca nos deixava jogar bola depois do horário da educação física”, relata. Juntamente com seus colegas de banda (bando?), o garoto chegou a praticar atos terroristas, como esvaziar os pneus do veículo da diretora. Por essas circunstâncias do mainstream, suas músicas não chegaram às multidões, pois os shows não passavam dos limites da garagem do seu amigo Renato.

No ensino médio (mediano?), a rebeldia roqueira deu lugar aos hormônios. Como diz o poeta, aos 15 anos tudo é eterno. Por isso, Leandro confessa ter sido adepto do casamento imediato ao conhecer as pretendentes. “Cheguei a pedir a mão de 23 garotas”, diz. Obviamente nenhuma delas cedeu aos (des)encantos do rapaz.

Chegando ao fim do colégio, o jovem se viu confrontado por sua professora de Português. “Ela simplesmente me perguntou o que eu queria fazer da vida”, conta. Confuso, ele preferiu não responder.

Um dia, percebeu que sempre gostara de escrever, mas sua atração sempre foi por outro, pelo estranho que não era ele. Talvez por suas raízes mais ou menos comunistas, Leandro sempre preferiu a terceira pessoa. “Acho que conhecer o outro é encontrar a si próprio. É isso o jornalismo na minha vida, é para isso que ele serve”, analisa.

Talvez essa seja a explicação psicológica da coisa. Na prática, Leandro desejava mesmo era salvar o planeta dos monstros gigantes. Porém, ao entrar na faculdade, viria a descobrir que essa não é uma atribuição do jornalista. “Na primeira aula, uma professora sugeriu que, quem estivesse ali para salvar o mundo, podia se retirar da sala”, revela, constrangido.

Mas ele, Leandro Machado, brasileiro da Zona Leste de São Paulo, nascido na época em que o Bon Jovi ainda tinha cabelo, comunista aos dez anos, roqueiro e adepto do casamento imediato, não desiste ao ouvir uma frase desanimadora.

Quatro anos depois, ele escreve, procura o “eu” dentro dos outros e chama os monstros gigantes para o ringue. “Alguém quer brigar?”, pergunta.

*Esse texto foi escrito para concorrer a uma vaga no Curso Abril de Jornalismo. O tema era "quem sou eu e por que jornalismo". Espero conseguir. Torçam por mim. Adeus.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Do lado de dentro [conto]

Por muito tempo me tranquei em casa, afundado na inércia e na solidão dos meus amigos do Orkut. Enquanto isso, lá fora, uma cidade inteira tocava a minha campanhinha.

Um dia, abri a porta.

domingo, 5 de setembro de 2010

Do lado de fora [conto]

– Posso ouvir o som que sua barriga faz?

– Claro, mas não deve ser um barulho muito agradável.

– Ela está roncando bastante. Que engraçado!

– Amor, agora você quase me conhece por completo. Até o som da minha barriga...

– Ah, é? Você disse quase. O que mais tem aí dentro?

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Encontro [conto]

Eu disse que era ela, eu te avisei que ela chegaria agora. Você não me ouve, nunca me ouviu. Fica sempre aí, flutuando em seu último orgasmo. Que droga! Nosso amor tem pressa! E agora, o que nós fazemos? Ela está batendo na porta, dá pra ouvir? Se ela te vir aqui, você morre, entendeu? Morre! Precisamos pensar... Onde eu te escondo? Espera aí, vou fazer alguma coisa. Entra, vai. Vou lá abrir a porta.

– Oi, amor! Chegou cedo hoje.

– Sempre chego cedo pra você, né? Que cheiro de homem é esse?

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Risco

Minha mãe sempre me pede para beber um copo d’água depois de tomar sorvete. Segundo ela, o método serve para evitar uma eventual gripe, que viria através do efeito gelado do sorvete.

Imagino se tivéssemos que beber um copo d’água para todas as coisas boas do mundo. Seria uma chatice, não?

Não há vida sem risco.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

De nada

Ligo o computador, ligo a televisão, ligo o rádio. Ouço uma música que não me empolga. Acendo um cigarro, acendo um incenso, bebo um gole de uísque, bebo um remédio para dor de cabeça. Tento escrever um poema, tento escrever um conto, leio um romance. Mas, nada. Mais nada. O telefone toca. “O que você está fazendo?”, me perguntam. “Nada”, respondo. “Eu também não”, confessam.

O tédio é contagioso.

domingo, 22 de agosto de 2010

Soul

A tristeza não vai para o currículo
A inveja não vai para o currículo
A decepção nunca foi para o currículo
A angústia nunca foi citada em um currículo
A depressão, a injustiça, a vergonha
nunca foram pro currículo
Meus sentimentos jamais estarão em meu currículo.

No meu currículo tem tudo o que não sou.

domingo, 25 de julho de 2010

Currículo

Como vocês não sabem, escrevo para o Jornalirismo, site comandado pelo jornalista e escritor Guilherme Azevedo. Nessa semana, o Guilherme queria atualizar o expediente do site e me pediu para criar um pequeno currículo das minhas atividades. Ou seja, um texto sobre as coisas que andei fazendo nos últimos 21 anos.

Se você me conhece bem, sabe da minha tendência para o deboche e para a falcatrua. Então, depois de mandar um currículo sério para o Guilherme, escrevi este especialmente para o Verbâmidas.

Leandro Machado, jornalista.

Nascido no glorioso fevereiro de 1989, se orgulha de ser um dos poucos remanescente da era do Muro de Berlim. Queria ser comunista, mas preferiu aderir à Coca-Cola e ao Big-Mac. Seus heróis mudaram de armadura, seus inimigos viraram um monstro gigante.

Quando pequeno queria ser poeta, mas a poesia sempre foi muito grande para ele. Decidiu pelo jornalismo para fugir do tédio. Depois descobriu que o tédio é infinito. Como não tinha dinheiro para a faculdade, se inscreveu num programa do governo. Tornou-se um filho do Lula, mas ainda prefere seus pais verdadeiros.

Tem medo de aranhas, ratos, lagartixas e animais do gênero. Sua palavra preferida é “ventoinha”. Adora comer, dormir, beijar e tomar banho. Viveu alguns romances, mas por enquanto não escreveu nenhum.

sábado, 17 de julho de 2010

Vivi

Quem se lembra do Negritude Jr, do Katinguelê, do Pixote, do Molejo, do Karametade e do grupo Desejo? Que se lembra de como eram ruins aquelas rimas com beijo? Rimas com paixão, dor e coração? Quem se lembra do kichute, da bola de plástico, da bala de banana? Quem não se lembra de, pelo menos uma vez, ter xingado a Dona Ana? Sai daqui, velha coroca! Bruxa do 71! Quero mais uma coca, seu Pascoal! Quem não se lembra de, na Copa, ter pintado toda a rua? De ter sonhado com a Tiazinha nua? Quem se lembra do dor do Merthiolate? Queima, queima, queima a fogueira na esquina! A bola bate, a velha grita e eu morro de amores pelas Chiquititas (em especial pela Vivi).

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Antônio tem uma musa

Ontem, às 9h37, ao observar uma garota de olhos azuis que estava sentada na Praça dos Almirantes, o poeta Antônio da Silveira, de 27 anos, encontrou o tema para seus novos poemas. A garota não era bonita nem nada. Na verdade, era até feia, se vestia mal e não tinha a formosura que geralmente corre no sangue das musas. Mas o Antônio, consciente de seu ofício de dar palavras belas a coisas ruins, viu nela toda uma junção de características que a transformariam em versos. O poeta, então, parou para olhá-la com maior cuidado, pois é da observação que surge a beleza. A poesia poderia surgir a qualquer momentos era óbvio o seu encanto ao levantar a sobrancelha ou ao mexer o cabelo ou ao dar uma piscadela. Todos os movimentos pareciam durar uma eternidade e, mesmo quando terminados, continuavam a soar no ambiente e aos seus olhos de poeta. O que é a poesia se não tornar eterno algo que já passou? Então, excitado pela proximidade do verso que lhe vinha à mente, Antônio se levantou, pegou uma caneta e, antes que colocasse a primeira palavra no papel, ouviu uma voz.

– Oi – , disse a garota dos olhos azuis.

Antônio viu a moça como se fosse a primeira vez.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Consolação

É impossível calcular quantas pessoas passam diariamente pela Avenida Paulista. Milhares, com certeza. Apenas nas catracas da estação Consolação são mais de 40 mil todos os dias, segundo o Metrô. Essas catracas funcionam como porta de entrada da mais famosa via de São Paulo, uma prévia antes do deslumbre da grandeza da Paulista.

Inaugurada no dia 25 de janeiro de 1991, hoje a estação Consolação é um ponto de encontros e desencontros. No final de semana, os jovens da cidade se reúnem sempre no mesmo local. Aguardam o amigo ou amor que está chegando pelo metrô. Depois vão para as centenas de bares e baladas da região mais movimentada de São Paulo.

Durante a semana, jovens e adultos se amontoam nas catracas e esperam por alguém que ainda vai chegar para um almoço de negócios ou mesmo para um passeio. Alguns demonstram impaciência, pois a pressa corre forte na veia dos paulistanos. Nas catracas de ferro da Consolação pesa a ansiedade do que ainda está por vir.

“Estou esperando um amigo”, revela a jovem Julia Garcia, sorrindo. Mais tarde, a garota confirma ser o garoto mais que uma amizade, é um pretendente. De braços cruzados, ela parece impaciente. Olha para todos os lados, procurando alguém que, por enquanto, só faz presença em seu pensamento. “Ele não está atrasado, é que encontros são incertos, né? E se a pessoa não vem?”, pergunta, medrosa.

Mais perto das catracas, uma loira anda de um lado para o outro. Sobe as escadas, vai até a rua, depois retorna ao saguão. O tempo passa mais devagar quando se está nervoso. Os minutos viram horas; as horas, dias. “Está vendo? As pessoas às vezes não vêm”, observa Julia. “Imagina, um atraso desses pode acabar com um casamento, com uma amizade”, brinca.

Do outro lado do saguão um grupo de amigos conversa animadamente. “Estamos indo para uma baladinha ali na Augusta”, conta Alex Rodrigues. Ele tira do bolso o celular, que vibra. “Meu, o Bruno vai demorar mais 15 minutos”, diz em seguida. Muitos palavrões e xingamentos são ditos na sequência. “Há 15 minutos ele disse que chegaria em 10”, conta Marcos Rosado, outro membro do grupo.

O melhor da festa é esperar por ela, diz o ditado. Julia ainda aguarda o seu amigo, tentando adivinhar um futuro incerto. “Ele é bonitinho”, brinca, sorrindo. Eles vão ao cinema, mas se vão assistir ao filme é outra história. “Sempre depende do homem, né?”, diz Julia, que continua olhando para os lados. 

A loira, por sua vez, parece estar mais calma, pois não checa mais o relógio. A melhor forma de esperar é esquecer o tempo. Dois minutos depois, um homem cabeludo aparece do outro lado da catraca. A loira corre em sua direção. Os dois se abraçam longamente, esquecem as horas perdidas em ansiosa espera. “São tão bonitos esses encontros, se eu tivesse um namorado...”, diz Julia. 

O grupo de amigos ainda espera o seu membro desgarrado. “O Bruno já nasceu atrasado”, diz Marcos. No bolso de Alex, o celular vibra mais uma vez. Uma mensagem de Daniel diz: “Cheguei”. Onde está ele, então? Alex liga para o amigo. “Meu, vocês não acreditam! Ele já está na balada”, diz. Todos saem correndo. “O Bruno é um filho da...”, gritam.

Julia cruza os braços: busca em si algum consolo perdido. Nem começou o filme dos dois e ela já pensa num final infeliz. “Foi um erro marcar um encontro na Consolação, né? No Paraíso teria sido melhor”, brinca. No grande relógio no teto da estação, os ponteiros marcam 7 horas da noite.

Pela escada rolante, um garoto de franja sobe: está mais pálido que polido. “É ele”, Julia sorri. Em São Paulo, o seu príncipe anda de metrô e não a cavalo. Felipe, o garoto, ultrapassa as catracas aos pulos. Os dois se abraçam timidamente e logo vão embora rumo ao cinema. 

O atraso parece pequeno no calor do encontro.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

My first day at school

Como sempre, as redações do meu curso de inglês me fazem lembrar um passado tão remoto quanto os vestidos da Hebe. Hoje, ao pegar a folha de redação, me deparei com o meu primeiro dia na escola. 

O que escrever? Os anos, rápidos e imperdoáveis, apagaram o poder de comprovação das minhas lembranças. Será mesmo verdade o meu choro naquele primeiro dia? É verdadeiro o meu pânico ao sentir que entraria num outro mundo se ultrapassasse aquele portão azul?

Sei que eu era menor que um anão. Não, as coisas que eram gigantescas, enormes, desproporcionais aos meus sonhos e dedos pequeninos. Minha maior preocupação, na época, era guiar o Mário Bros por mundos escondidos nas estrelas.

Cheguei à escola e encarei o portão azul com o medo se derramando pelos olhos. Onde estaria a minha mãe para enxugar o meu desespero? Em seu lugar apareceu uma moça gorda, que disse ser minha professora. Ela se chamada Mirian, mas seu nome deveria ser Gentileza. A Mirian me mostrou como o mundo era pequeno, pois, afinal, ele cabia inteirinho dentro de um mapa.

Minha primeira professora também me ensinou o tamanho das palavras. Com elas, eu poderia transformar uma minhoca numa guerra nuclear, uma frase em uma revolução, um sentimento numa letra de música. As pequenas palavras são as mais importantes, pois carregam dentro delas coisas gigantes: “céu”, “amor”, “dor”, “deus”. 

O meu primeiro dia na escola foi o do meu primeiro amor. Me apaixonei pela Amanda assim que a vi. Era magrinha, com cabelos longos e despenteados. Em um ano, acho que nos falamos por umas três vezes. O amor é indescritível mesmo na infância e, por mais que eu cresça, ainda não aprendi sua gramática.

Fiz várias amizades no primeiro dia. Tirando o Luciano, acho que nenhuma sobreviveu às brigas do futebol. Brigávamos como adultos, pois o Júnior não era um bom goleiro, o Michel perdia todos os gols e eu, infelizmente, era um péssimo árbitro. Contrariando as expectativas, nenhum de nós disputou uma Copa do Mundo.

Quando o sinal bateu marcando o final do dia, provavelmente percebi que era um início de uma vida. O segundo dia dura até hoje.

sábado, 1 de maio de 2010

Dor/rio

Minha senha é dor, sonhador

Que dor? Que nada, nadador

Um dia a dor me mata, matador.

domingo, 11 de abril de 2010

O frio e o meu muro de Berlim

Não gosto muito do calor: os meus genes não foram desenvolvidos para o clima abafado, muito menos para o tostamento coletivo nas areias de Santos. Então, na segunda-feira, ao me deparar com o vento gelado, senti uma atmosfera boa.

As pessoas ficam mais bonitas no frio, com certeza: as blusas, compradas na última liquidação, saem do armário, as bochechas ficam rosadas, as mãos ganham luvas pretas, os vidros adquirem uma fina camada de gelo e o meu cachorro pode, finalmente, utilizar a roupinha bonita que fizemos para ele no Natal.

A cidade de São Paulo também fica mais bonita durante o inverno. Porém, em nós, habitantes do caos, cresce uma superfície um tanto solitária. É uma solidão dura, estreita...Uma solidão que poderia doer por cem anos, mas logo o vento passa, deixando claro que vivemos em São Paulo e não em Macondo.

Na minha frente, por exemplo, uma senhora de vermelho enxerga alguém que não está aqui, no metrô. Talvez pense em um amor perdido nos anos 80: agora, nesse frio de cortar o coração, ela o reencontra em algum pingo de chuva que cai lá fora.

A solidão também grita no menino-engraxate, que entrou no metrô há pouco. Depois de um longo discurso sobre o seu pai doente, ele pede alguns centavos. Se eu tivesse um hambúrguer agora, eu daria a ele. Não, não, esses lanches são gordurosos. Melhor: eu vou dar os centavos e o garoto escolhe o que prefere comer. Carregando nas costas a solidão e a malinha de engraxate, o garoto se encolhe junto à porta. Vai embora sei lá para onde (prefiro nem pensar nisso, aliás).

Ao meu lado há uma família: a esposa, o marido e os dois filhos (um garotinho e uma menina de uns dois anos). Só descubro o nome da menina: Raquel. Aparentemente, eles vão viajar, pois carregam algumas malas. O garotinho cochila enquanto seus pais discutem. A Raquel se debruça para ver o pinguim que ilustra a página da revista que estou lendo. “Ziiiinguiiiim”, ela grita, satisfeita.

Rapidamente o trem avança, mas o garotinho continua a dormir, solitário. “O sentimento é ruim, o sentimento te derrota”, diz a esposa, olhando fixamente para o marido. Anoto a frase enquanto a Raquel sorri com o Ziiiinguiiiim. Em seguida descemos todos na estação.

Como o frio, a solidão arde em todos nós. Estamos juntos, mas algo nos isola. Alguma barreira distancia os mundos: o muro Berlim já caiu, mas continuo separado da Raquel, do garoto-engraxate, de tudo o que é alheio. Será isso ou é apenas uma sensação? Será o frio ou no calor também fico congelado?

A família vai embora. O marido leva o garotinho nos braços. Com um aceno, a Raquel se despede do Ziiiinguiiiim enquanto a sua mãe, sozinha, canta baixinho: “Mais alto, mais alto, mais profundo”.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Jornada Fotográfica

Com uma câmera pendurada no pescoço, André Doeuk caminha por uma 25 de Março lotada de ambulantes, crianças e pessoas perdidas. “O que é um fotógrafo?”, pergunta e, olhando para a multidão, responde: “Alguém que tira uma foto, ora”. Ao longo do maior comércio de rua de São Paulo, 31 pessoas acompanham Doeuk na Jornada Fotográfica – projeto que reúne mensalmente dezenas de amantes da fotografia. 

Uma iniciativa de André Douek, a Jornada Fotográfica é gratuita e acontece sempre em algum ponto famoso da capital paulista. Em 13 anos, o projeto já percorreu a rua Augusta, o mercadão da Lapa, a Avenida Paulista, entre outros lugares. Os participantes, sempre munidos de câmeras, se encontram e partem para o local previamente escolhido. 

Dona Elza Martins, 72 anos, é uma das mais animadas do grupo. “Antigamente, eu tirava fotos da família. Desde que conheci a Jornada, adoro fotografar a cidade”, exalta, sorrindo. Com uma câmera digital pequena, registra seu amor por São Paulo. “Sou paulistana e me apaixono a cada dia mais por isso aqui”, diz enquanto se senta para ler um jornal.

“Dona Elza, que foto é essa aí no jornal?”, pergunta Alessandra Oliveira, 20 anos. “Acho que é sobre o metrô”, responde Dona Elza, calmamente. Alessandra, acelerada, puxa uma pequena Kodak e se debruça para fotografar o chão. “Quero ser fotógrafa”, diz, clicando.

Pela primeira vez na Jornada, Alessandra sonha com uma câmera melhor. Quando chegou e viu os outros com um equipamento enorme, ficou com vergonha de abrir a bolsa. “O pessoal é tão legal que ninguém reparou na minha câmera pobrinha”, diz ela. 

Das 31 pessoas que participam da Jornada na rua 25 de Março, apenas quatro não possuem uma câmera profissional. “Isso não quer dizer nada”, contesta André Doeuk. “A câmera aumenta a possibilidade, mas a foto está na pessoa”. Alessandra não acredita no mestre: ainda quer uma máquina melhor. “Sua câmera é pesada, né, André?”, pergunta. 

Às 11 horas da manhã, o sol queima em um céu de brigadeiro. “Gosto de fotografar paisagens,a luz, o céu...”, revela Alessandra. “Prefiro pessoas”, diz Doeuk, que aponta sua objetiva para duas estátuas humanas. “Você vai ver, Alessandra, se começar a frequentar a Jornada, dentro de um ano você vai evoluir muito”, aconselha o experiente fotógrafo: são 40 anos de profissão.

Também são vários os anos de profissão de Nalva Maria, 61. Ela fotografa profissionalmente desde 1983. “Sou cineclubista, aposentada pela Editora Abril, já fiz televisão, exposição...Tira uma foto minha embaixo desse véu?”, pergunta, em frente a uma loja de fantasias. Depois, ela anda até o final da rua 25 de Março, mas tira poucas fotos. “Hoje estou preguiçosa”, diz enquanto desliga sua câmera analógica. “A fotografia mudou o meu destino”, confessa, com os olhos brilhando como flash. 

Ao meio dia, todos se reúnem na estação Sé do metrô. André Doeuk recolhe os filmes e os cartões de memória dos participantes. No mês seguinte, as melhores imagens serão expostas no Arquivo Histórico Municipal, próximo à estação Tiradentes. “Qual é o objetivo? Bom, é registrar o patrimônio da cidade”, diz Doeuk. 

Um dos participantes empresta uma câmera a Doeuk para que ele registre uma imagem. “E agora, o que eu faço, é só apertar o botão?”, pergunta o fotógrafo.

domingo, 4 de abril de 2010

Anúncio de um conselheiro amoroso

Se você foi traído ou se você mesmo traiu, se você tem vontade de gritar com ela, se você quer bater naquele cafajeste sem vergonha, se você perdeu a honra, se você não agüenta mais esperar por uma mensagem, se você quer abraçá-la agora, agora mesmo, nesse segundo que você perdeu sem vê-lo, se você quiser construir seu coração cortado, me procure.

Por favor, me procure se você perdeu a aliança, se você queimou todas as cartas, se você estragou aquela dança, se você nem sabe dançar, se você não liga para ninguém, se você não ligou pra ela ontem à noite, se você esperou que ele aparecesse para te salvar do tédio.

Procure-me no Google se você quiser algum remédio, se foram verdadeiras as suas lágrimas, se você não sabe o que escrever no depoimento, se você não aprendeu a esquecê-la, se você se arrependeu, se não se arrependeu, se dói, se doeu...Me procure, por favor.

Vem, me procure agora se você destruiu seu casamento, se você terminou ou se terminaram com você, se você ama ou se não ama mais, se você sente aquela terrível vontade de chorar, se você quer brigar com a amiga da prima do seu ex-namorado...Se você for embora, se você fugir do mundo e do amor e de tudo o mais, me procure, pois eu também, eu também já me senti como você.

sábado, 27 de março de 2010

Quero-quero

Ontem, no meio de uma rua Taquari lotada de festeiros universitários, ouvi alguém sussurrar uma pergunta: “E aí, o que você quer da vida?”. A questão, obviamente, não foi dirigida a mim, mas bem que poderia ter sido.

Quero tantas coisas na vida, meu caro. Quero dormir menos, por exemplo, pois enquanto sonho o mundo se realiza; quero perder a razão, às vezes, mas, se eu gritar, não me ouça; quero aprender novas palavras, mas que elas não me prendam, por favor; quero viajar até a lua, só para convidá-la a participar dos meus poemas; quero escrever poemas; quero pensar menos nos romances e ser mais romântico; quero ler Cortázar, Dostoievski e Leminski; quero conquistar a minha vizinha bonita;  quero tocar todas as nuvens no céu de seus olhos azuis. Quero acreditar menos nos outros e mais em mim; quero tirar mais fotos, pois no futuro precisarei enxergar o passado; quero me dedicar mais aos amigos, com certeza: ao Ivan, por exemplo, quero explicar que nada apodrece por completo, que sempre sobra algo dentro de nós; à Nathália quero escrever uma carta maneira (ou mineira); quero dizer ao Sato que o último beijo é melhor que o primeiro. Quero você...sim, você que hoje me lê, quero que me leia amanhã também. Não quero dizer adeus, mas quero ir embora e nunca mais voltar. Quero beber menos e ficar mais bêbado; quero insubordinar minhas frases; quero usar menos o “mas”. Mas, mas... Meu caro, só quero mais, só quero mais de tudo um pouco. Quero nada e qualquer coisa!

sábado, 20 de março de 2010

18 de março, quinta-feira, na papelaria e, posteriormente, no trem

Certa vez, Ignácio de Loyola Brandão confessou já ter usado 4.619 blocos de notas em sua vida de jornalista e escritor. Segundo ele, essa obsessão surgiu depois de ler a biografia do americano Ernest Hemingway – romancista que acreditava piamente no poder do bloquinho para quem deseja escrever bem. Eu, minúsculos frente aos dois, tenho a incrível marca de cinco blocos de notas nessas 21 primaveras.

Juntamente com o microfone, o instrumento símbolo do jornalista é o bloquinho. Em suas micro-folhas são observadas as situações interessantes, criadas as reportagens e reproduzidos os discursos e as frases que mudarão o mundo. O bloco de notas (ou as cadernetas, como preferem alguns) é um reservatório de ideias e impressões.

Nessa semana, eu precisava de bloquinhos, pois o meu TCC já estava à vista: anotarei muitas coisas, imagino. Fui à papelaria da São Judas – a universidade onde estudo. Comprei dois iguais, pequenos e de capa azul-marinho. Não há paisagens na capa, infelizmente.

Encontrei o meu professor Miguel Frias na saída da loja. Batemos um longo papo sobre a palavra e as suas diferentes formas. Na verdade, pouco falei, incapaz que sou. Ele discorreu sobre a diferença entre a escrita científica e a literária. “Na ciência, não podemos dar margem a diferentes interpretações. A literatura é o oposto: o escritor não se prende à exatidão”, disse. O Miguel, que também é poeta, fechou a conversa com uma frase singular: “Escrever é transcender”.

Saí do papo com a frase na cabeça. Transcendência? Como assim? E eu, pobre de palavras, que nunca saí do chão? O que farei? Vou-me embora para casa, porque lá sou filho da minha mãe, pensei, e fui. No trem, quis escrever algo no bloquinho: uma palavra, uma frase, uma crônica, um texto revolucionário... Eu estava cheio de ideias e as folhas continuavam virgens.

Inspirado no Miguel, me lembrei de algumas definições para o ato da escrita. Para José Eduardo Agualusa, “escrever é uma irresponsabilidade”. João Gilberto Noll disse: “escrevo para não ter que matar alguém”. O roteirista americano Syd Field acredita que “escrever é a melhor forma de perguntar e obter respostas”. A cantora angolana Kianda revelou: “escrevo para iluminar os corredores de minha alma”. Até eu já disse que “escrevo para conquistar a minha vizinha bonita”.

Mas, de verdade, porque escrevo agora? Vou escrever sobre uma rua e nem mesmo conheço os caminhos da minha vida. Por que deixei de plantar uma árvore ou salvar uma vida ou cantar uma música ou lavar o banheiro ou viajar pelo mundo ou criar os filhos que ainda não tive para, justamente, buscar palavras no céu de minha mente? Por que escrevo agora?

De repente senti um sono provocador. Encostei a cabeça na parede do trem e cochilei por alguns minutos. Assim que acordei, tive a revelação. Puxei a caneta e, rápido, anotei no bloquinho: “Escrevo porque preciso dormir à noite”.

quarta-feira, 17 de março de 2010

16 de março, terça-feira, no Cinesesc

Como vocês sabem, o Cinesesc é a unidade voltada ao cinema do Sesc São Paulo. Fica na Augusta, 2075, descendo para os Jardins – o lado sóbrio da rua. O espaço abriga uma ampla sala de projeção, com uma tela de razoável grandeza. As poltronas são de um couro preto e confortável, perfeitas para quem deseja dormir um pouco.

Trabalhei por dois anos no Sesc Vila Mariana, que fica mais ou menos perto da rua Augusta. Como eu saía ao meio-dia da faculdade e entrava apenas às 16h no trabalho, passei boas horas nas poltronas negras do Cinesesc. Eu tinha muito sono durante o dia, então, como não pagava a entrada por ser funcionário, eu corria para o cinema a fim de descansar.

Dormindo, perdi os maravilhosos filmes austríacos, deixei de ver pérolas do cinema malaio, não me diverti com nenhuma comédia israelense e, infelizmente, não dei a mínima para todos os problemas do leste-europeu, pois, enquanto eles eram escancarados na tela, eu sonhava com alguma donzela de minha cabine particular.

Resolvi voltar ao Cinesesc nessa semana. Joguei fora o lado sonhador de minha vida e decidi assistir ao filme, finalmente. Escolhi “A Fita Branca”, do diretor alemão Michael Haneke. Adorei! Apesar de duradouro e duro em alguns momentos, o longa é realmente muito bom!

Mas o que tudo isso tem a ver com o meu TCC? Bom, está em cartaz no Cinesesc a exposição “Augustas”, do fotógrafo Eder Chiodetto. São dezenas de fotografias que mostram a diversidade da mais democrática rua da cidade: com uma câmera analógica, o artista capturou olhares, pessoas, carros, luzes, brilhos, momentos...Eder conseguiu imagens que chegam perto da abstração.

***

Quando saí do Cinesesc, a noite estava imensa. O céu era de um azul sereno, tranquilo. Andei um pouco... Logo parei em um farol de pedestres. Por dois minutos ele se manteve fechado: um pequeno número de pessoas se amontoou, esperando. Os carros corriam no asfalto... Quando o farol abriu, tive a sensação: essa rua é meio viva, não?

segunda-feira, 15 de março de 2010

13 de março, sábado, na rua Augusta sob o sol forte

Escrevo hoje, na segunda-feira, mas os fatos se deram no sábado, 13 de março.


Desci na estação Anhangabaú, às 16 horas. A Karol, minha amiga publicitária, não estava lá,  diferentemente do que havíamos combinado ao telefone. Sua pressão caiu e ela se atrasou por uns 30 minutos. O calor estava perto dos 35 graus. A temperatura sobe e a pressão sempre desce, deve haver uma proporção macabra nisso.

A Karol mora perto da Augusta, na rua da Abolição (achei o nome sugestivo). Pedi a ela que me acompanhasse nesse primeiro dia, pois, vivendo ali, conhece a região melhor que eu.

Andamos, pois, dentro do forte calor. O ar estava quente e o vento era pouco. Paramos em uma padaria já no início da Augusta. Compramos uma água por R$ 2,20, o que nos deixou indignados. “Uma garrafa tão pequena por esse preço?”, perguntei, sedento.

Mais acima, alguns adolescentes esperavam a abertura de uma balada que eu não conhecia. “Deve ser matinê”, comentei com a Karol. Os jovens vestiam roupas pretas e justas – não se importavam muito com o calor.

Enquanto subíamos a rua, tentei explicar o meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) à Karol: “É um livro-reportagem sobre a Augusta, mas o foco principal será um salão de cabeleireiros. Quero falar da rua a partir do salão, entende? Como um ponto de encontro”. Silêncio. “Bom, não entendo, mas tudo bem...vamos procurar”.

Passamos por três salões. Nenhum se encaixou no “perfil”, seja lá qual era o perfil. A Karol se lembrou de um salão. “Sempre tive curiosidade de entrar lá”, confessou. Procuramos, então. Sem sucesso. Subimos, descemos, subimos novamente, voltamos, e nada. Quase desistindo, resolvi atravessar a rua para ter outra visão. Deu certo, em dois minutos achamos o dito: já havíamos passado por ele algumas vezes.

Giva! É como se chama o salão. Giva. Se fosse Diva, eu já teria o nome do livro. Fiquei com receio, a princípio. A coragem me abandona antes de entrevistas, depois eu me solto. Entramos, e o medo tremeu em minhas mãos. Expliquei o trabalho ao Marconi, a primeira pessoa a me atender. Ele aceitou de primeira. Não fez pergunta alguma, o que me deixou sem jeito.

Ao lado, em frente ao espelho, uma cabeleireira passava alguma coisa branca na cabeça de um homem. Os dois eram contemplados por um poodle magrelo e barulhento. No balcão, um homem/mulher olhava o Orkut por um notebook. A Karol, sentada em um pufe, mexia no celular. Eu, nervoso, ainda tentava explicar o livro ao Marconi.

De repente entrou um mendigo. Ele parou e, aos gritos, se dirigiu ao poodle: “Você está em choque, cadela? Diz, você está em choque?”. Em seguida, o homem passou uma das mãos na peruca loira de um manequim que estava na entrada. Ele desceu os dedos e apalpou com força os seios da boneca. A cena durou alguns segundos. Depois, se virando depressa, foi embora.

Tudo continuou como se nada houvesse ocorrido...

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Patinação

Na folha branca, um mundo de possibilidades não-concretas, ideias incompletas: a crônica é uma construção do espírito e da mente. Preciso escrever, mas ainda estou incipiente. Sou um texto sem contexto. E o que direi sem nem mesmo conhecer?

Você e as imagens estão nas pontas dos meus dedos, só me faltam as palavras: serão elas doces ou amargas? Grandes ou pequenas? Desfeitas ou enfeitadas? Que nada, minha crônica não sairá do lugar, pois eu continuo parado – inerte em um mundo de espera.

Ah, quem me dera escrever algo bonito sobre você, garota. Mas, no final, deslizo e sonho em círculos, patino na pior das pistas: eu.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Augusta e Mariana

Apesar de estreita como uma artéria, a rua Augusta tem um grande comprimento. Sua amplitude alcança extremos da cidade: do centro velho aos Jardins, do coração abandonado à amante de ocasião, do fino ouro à miséria do mendigo que me implora dez centavos.

À noite, ando pela Augusta e me apaixono pelas miudezas: acontecimentos menores, minúsculos, que causam aqui, em mim, explosões da alma. São pequenas frações do minuto...menos, menos: ínfimos segundos que revelam o sabor imensurável da condição humana.

Em um bar, por exemplo, dois homens jogam bilhar. Estão contentes por se acharem ali, alcoolizados de liberdade, e não juntos às esposas, que dormem em casa, provavelmente. Os dois homens riem, alegres, como se esse fosse o último riso – uma bola caída no buraco, um objeto-sentimento que nunca mais voltará à mesa.

Mais acima, na esquina, duas garotas dormem escoradas em uma porta de ferro. Estão ancorada uma à outra: assim se sentem seguras, imagino. Seus rostos transmitem serenidade, transcendência ou, talvez, uma bebedeira. Para elas, descansar em uma rua de perigos não significa nada, pois uma tem a outra, eternamente enquanto durar o sono.

Um amigo meu, o Renato, também está por aqui, na Augusta. Ele sobe a rua em direção à Paulista. Anda rápido, e parece fugir de algo. Está acompanhado da namorada, a Érica. Enquanto caminham, os dois discutem: ela grita, ele grita, ela chora, ele vira as costas, ela chora mais, ele retorna, eles se beijam e se amam novamente. O amor é claustrofóbico, sinto.

Mais alguns passos me levam a um grupo de pessoas. Nada melhor que estranhos para eu me descobrir melhor, penso. Com desconhecidos, atinjo o maior nível de sinceridade. Os estranhos são três garotas e um casal, que, como todo casal, não enxerga o resto do mundo.

Uma das garotas vomita o álcool da noite. Patrícia é o seu nome. Tento consolá-la com palavras doces, mas a bebida é mais amarga. Grito, pois ela está no outro mundo e não me ouve. Depois de jogar fora as impurezas, a Patrícia encosta a cabeça nos meus ombros e dorme o sono dos bons.

A outra garota se chama Bruna. É morena, alta e alegre. Fala bastante, talvez por ter bastante a falar. Parece-me meio inquieta, cheia de vontade de ir embora. Mas, de repente, ela me surpreende: quer beber mais uma tequila! Com o desânimo dos outros, ela desiste. Toca o telefone: é a sua mãe.

Por último, a Mariana, que deveria ser a primeira, pois foi com ela que puxei conversa. A Mariana tem um sorriso lindo, encantador...Seus cabelos, castanhos, voam com o vento forte da Augusta. Ela fala rápido e meio enrolado (ou talvez meus ouvidos que sejam lerdos demais). Me chama de amigo, como se nos conhecêssemos há alguns anos.

Peço dois reais emprestados pra ela, pois perdi o meu dinheiro e os meus amigos, que já foram embora. Preciso pagar a passagem de volta. Ela procura nos bolsos duas moedas de um real. “Muito obrigado”, digo.

No alto de um prédio um relógio marca cinco da manhã. Penso na noite: quantas coisas, situações, pessoas! Que demais. Mas vou embora, tudo bem? Até mais! Eu ficaria por aqui, sim, para sempre sentado na calçada...eterno enquanto durar o meu encanto: eu, a Augusta e a Mariana.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Impressão: Leandro

Felizmente, não nasci perfeito: meus olhos não são verdes nem azuis; minha cabeça é grande e meu corpo é pequeno; não tenho grandes músculos; minhas pernas são finas e meus dedos, grandes; eu tenho orelhas enormes e meu cabelo é enrolado; me enrolo com as garotas e me perco em desamores.

Mordo o dedo quando estou ansioso; anseio coisas que não posso ter; tenho medo de dormir sozinho em casa; já chorei em eventos esportivos, como as Olimpíadas; às vezes amo clichês, como esse texto, por exemplo; adoro achar erros gramaticais em textos alheios e odeio quando os acham nos meus; sou arrogante, egocêntrico e idiota.

Desconfio dos mendigos que me pedem dinheiro, mas digo que simpatizo com eles; já fui comunista, capitalista e neoliberal; votei nulo nas últimas eleições; acredito na liberdade, mas me prendo em muitas coisas...muitas mesmo; quero fugir, sair por aí, andar pelo mundo...mas quando vou à praia sinto muita saudade da minha mãe.

Falo sobre qualquer assunto nos três primeiros minutos da conversa, mas passo boa parte do tempo pedindo desculpas; sou culpado pelo desaparecimento da minha cachorra, pois deixei o portão aberto e ela foi embora; nunca desabafei com ninguém; acho que escrevo bem e depois acho que escrevo mal.

Acredito no amor, mas de verdade nunca amei alguém; chorei diversas vezes por uma garota, mas não senti nada quando ela chorou por mim; relembro o passado pra esquecer o presente; o futuro, ah!, eu nem penso; ontem me apaixonei pela Mariana, anteontem, pela Camila, no domingo, não lembro.

Sou assim mesmo: falo muito de mim, mas no fundo não sei nada. Sou uma sensação, uma impressão qualquer. Talvez amanhã eu mude de novo, entendeu?

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Notícia menor

Há treze anos, eu estava na primeira série do ensino fundamental. Em 2010, vou para o último ano na faculdade e, por incrível que pareça, ainda me lembro de muitos detalhes daquele período em que o mundo era muito maior do que hoje. A minha classe, por exemplo, era gigantesca, enorme mesmo; nas paredes, o planeta inteiro estava grudado em mapas de papel. A Áustria e a Líbia eram ali do lado, assim como os Estados Unidos, que estavam ao alcance de minhas mãos.

Para lembrar alguns amigos: estudavam comigo o Luciano, o Cristiano, a Suelen, a Jaqueline, o Michel, o Ivan, o Renato, a Camila e a outra Camila (que tinha o carinhoso apelido de “Ó”). A professora era a senhorita Mirian, uma moça gordinha mas amorosa, que faltava à aula constantemente por conta de uma doença nas cordas vocais: a tristeza caía forte sobre nós quando ela não comparecia; voltávamos cabisbaixos para casa, com a mochila nas costa e a saudade transbordando pelos olhos.

Naquele ano mesmo, eu e o Luciano decidimos pelo jornalismo. Nós editávamos um glorioso e aventureiro jornalzinho, cujo nome não me lembro. Eu era o responsável pela cobertura do nordeste, de modo que percorri o sertão inteiro em busca de notícias bombásticas e calamitosas, mas encontrei apenas a triste história de um boi solitário que fora atropelado por um carro.

Recordo-me também de um caso totalmente inusitado que aconteceu comigo naquele ano. Se fosse permitido ao repórter contar suas próprias histórias no jornal, essa entraria em uma edição do nosso periódico infantil. Creio que o leitor, o antigo ou de agora, não veja muito interesse no fato; reconheço a inutilidade e a falta de cabimento do episódio. Mesmo assim, vamos a ele.
   
Eu, ansioso por aprender, resolvi apontar o lápis sozinho, sem a ajuda providencial da professora Mirian. É claro que sempre fui corajoso, por isso decidi não usar o famigerado apontador, mas sim um perigoso estilete que acompanhava o meu estojo. Resultado: cortei o polegar. Não foi um simples corte, não! Era um corte enorme, uma fenda no meio do pequeno dedo; parecia um vulcão: o mesmo vulcão que a minha professora tinha me mostrado naquele mesmo dia.

Acho que metade do sangue do meu corpo foi embora naquele dia. Simplesmente se derramou na pia do banheiro dos meninos. Hoje, depois de tantos anos, creio que aquele líquido vermelho poderia ter salvado algumas vidas no hemocentro ou, quem sabe, ter sido doado a algum laboratório de pesquisa do sangue de crianças idiotas.

Enfim, chegando em casa, fiquei com um medo terrível de minha mãe brigar comigo por causa do corte. "Onde já se viu? Com esse dedo pela metade você não vai mais poder fazer a lição de casa", eu imaginava seus gritos. Então, eu escondi o dedo. Sim, coloquei-o no meio da mão, bem protegido pela palma e também pelos outros dedos, responsáveis pela guarda. Daquele dedo cortado minha mãe não chegaria perto.

Fiquei uns cinco dias assim, com o dedo escondido e seguro. Acontece que o dedo não sarava. Continuava lá, parado, mortinho da silva, despejando sangue aos montes. Não sabia o que fazer, afinal de contas, eu ainda era novo para procurar um médico. E será que existia algum médico apenas para os dedos? A aflição me afogava: será que meu dedo ficaria daquele jeito para sempre?

Mas, não. Um dia eu acordei bem cedo. Minha mãe, esperta, estava ao meu lado. Não deu tempo de esconder o dedo novamente. “Você está com algum problema no dedo? Ontem você estava segurando ele sem parar?”, ela perguntou. Não havia saída: tive que mostrar o dedo pra ela. Mas aí aconteceu o milagre. Não havia mais corte, nem pedaços de pele. Não havia sangue. Meu polegar estava perfeito, sem corte nem cicatriz. “Eu, segurando o dedo? Como assim, mãe?”, perguntei.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Eu, eufórico

O copo, cheio de chope e de energia, flutua no espaço vazio e vai parar justamente em minhas mãos inseguras. Seguro o copo, feliz por saber que ainda existem pessoas dispostas a vender o sagrado elixir da discórdia. Bebo aquele líquido leve como se fosse água; talvez seja mesmo água, pois não mais sinto o gosto amargo do álcool.

Olho em volta: o ambiente transborda calor e pessoas. Muitas pessoas. Algumas falam alto, outras cantam, gesticulam; um homem barbudo briga com o segurança; uma garota bonita me parece perdida, ali sentada no canto; olha o encanto daquela morena: não a conheço de algum lugar?

O Luciano e o Adhemar debatem o último jogo do futebol americano. O Dallas superou o New York Dolls por 24 a 12, eu ouço um deles dizer. Quantos gols, penso: aqui no Brasil não temos um placar desses. “O futebol americano não tem gol”, alguém me alerta.

Caminho um pouco entre as mesas. O Sato e a Ludymila estão em uma delas. Conversam filosoficamente. Analisam a vida, imagino, pois há tanto a desvendar nesses corações amargurados...A Ludymila demonstra um ar sonhador: está apaixonada pelo Luciano, obviamente.

Aos tropeços, eu peço mais um copo ao garçom, que me retribui com a costumeira gentileza. Os garçons sofrem mais que os bêbados, pois cabe a eles alimentar o desamor humano; por suas mãos passa a energia que vai derramar uma lágrima, criar uma briga, um fora, uma tristeza.

Eu ando mais, e mais...procuro um local onde guardar a minha ansiedade. A Bruna, sentada perto da parede, gargalha ao ouvir uma piada do Vinicius. Tento lembrar algo engraçado para agradá-la também, mas os seus olhos puxados fogem de mim e vão a um ponto onde não posso alcançá-los. “Bruna, se eu não estivesse bêbado...”, digo, e escondo o sentimento.

***

O nível alcoólico está lá nas alturas, bem acima da minha cabeça, que, por sua vez, gira. Gira. Gira. Penso nas palavras. Quando estou bêbado, as palavras me vêm claras e limpas. Abutre, sobrancelha, inexorável, exeqüível, frenesi. Como são bonitas as palavras, são lindas de morrer...eu poderia escrever um poema agora mesmo, nesse instante...seria um poema sublime, um poema cheio de alegria e de amor. Se não fosse um poema, eu faria um lindo romance; um romance, é, um romance insuperável, pois ninguém, nenhuma pessoa nesse mundo feliz, nem você, leitor, nem ninguém...Ninguém pode amar mais do que eu nesse momento de euforia.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Microlembranças do medo

1) “Mãe, tem um soldado no guarda-roupa”, eu disse, atônico. Inconsolável, eu tremia depois de acordar de um sonho ruim; não lembro do pesadelo, mas sim da sensação de medo ao abrir os olhos. Eu tinha (e ainda tenho) a certeza que ali dentro, no meio das roupas e da poeira, um soldado contava os minutos para me matar, para engolir o meu cérebro e sugar todos os sonhos bons.

2) A casa não passava de um cômodo minúsculo. A cozinha, o quarto e a sala se dividiam dentro do mesmo caos; os móveis, antigos, brigavam entre si, lutavam por um pequeno espaço no piso vermelho de cera: a cama estava ao lado da geladeira e o guarda-roupa era vizinho do fogão. O meu medo se confundia com a luz fraca, uma luz que brilhava cansada. Nas paredes, uma tonalidade verde anunciava uma esperança que eu não tinha. Comecei a chorar. Uma largatixa muito pálida caiu em minha perna. Até hoje odeio largatixas.

3) Ouvi um estalo e me enchi de temor...Mais um estrondo cortou o meu ouvido e balançou a casa. E mais um e mais um e mais um... Por cinco segundos houve o silêncio. Um silêncio nascido nas catacumbas do medo. Pensei que acabara a confusão, mas explodiram mais dois tiros. Era a morte, sim: uma morte barulhenta, que não deixava ninguém falar...Devia haver um morto, afinal. Curioso, fui pra rua alguns minutos depois. Lá estava o corpo, caído com seis tiros na cabeça. Ele ainda respirava alto: sugava os últimos ares da vida. Cheguei bem perto, a centímetros do rosto coberto de sangue. Ele não me viu, pois não havia mais nada para ver.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Talvez

O salto alto produz um barulhinho característico ao tocar o solo: um clique, um estrondo abafado pela inconstância do chão. Calçando uma plataforma de doze centímetros, a loira caminha, andando rápido: leva nas pernas uma pressa desconhecida; talvez fuja de alguém, sei lá, talvez corra atrás da vida. De onde vem ela eu não sei, não sei aonde vai também.

O salto continua a produzir o clique enjoado. A loira anda carregada, pois a alma lhe pesa nas costas. O contorno dos olhos revela que chorou nas últimas horas: talvez tenha perdido um amor, um namoro, uma possibilidade...Para mim, perder uma impossibilidade é pior. Talvez eu ame mais o impossível.

Ela dá mais alguns passos e para exatamente no ponto de ônibus onde estou. “Que loira!”, concluo, infeliz da vida. Olho para ela, que por instinto retribui o gesto. “Que simpática!”, penso, e por um momento acredito em anjos. A loira, por sua vez, se vira para encarar os coletivos que chegam aos montes.

Sem mais nem menos ela se embaralha no salto, tropeça e cai de joelhos no chão. “Posso ajudar?”, pergunta um garoto, feliz com a eficiência do salto. A loira balança a cabeça. “Claro”, diz. O rapaz segura sua mão e a levanta. Imagino uma cantada brega para o momento: o garoto, sorrindo, poderia muito bem dizer “posso te levantar até o céu, se quiser”. A loira responderia, prontamente: “Sabe, também posso te levantar ao céu”.

Nunca fui bom em cantadas. Aliás, tenho certa desconfiança do ato. Frases feitas me incomodam profundamente. “Eu te amo”, por exemplo, é a maior das frases feitas. Quem a criou, não sei: talvez Adão, quando ficou sem falas melhores para dizer à Eva. É claro, não vou mentir: tenho minhas frases feitas, mas sou um fiel seguidor do acaso e da eventualidade.

Mecanicamente, a loira dispensa o rapaz. Sorri, apenas. Não há armas contra o sorriso, penso.

Duas garotas, ali encostadas no muro pichado, observam-na. “Que loira!”, diz a menor. “Não sei, ela me parece perdida”, reflete a outra. Afinal não são todas perdidas, as loiras? “Vocês podem me ajudar?”, pergunta a loira às garotas, que confirmam com a cabeça. Infelizmente não entendo o pedido. Talvez a loira, cansada, admitisse: “Que droga, briguei com meu namorado, quero esquecê-lo”. E uma das garotas responderia: “E eu com isso, minha filha? O amor é solitário, porra!”.

Meu ônibus passa, e eu o deixo passar: mais uns minutinhos ao lado da loira não caem mal. Ela se vira e olha diretamente para mim. Logo imagino uma declaração de amor: “Olha, eu nem te conheço, mas te achei lindo. É Leandro o seu nome, né?”. Talvez queira apenas falar mal do ex-namorado: “Leandro, ele me traiu 489 vezes”.

Ela continua a me olhar. Se aproxima mais. Fico intrigado: o que quer? Essa mulher tornou-se uma dúvida para mim, um talvez..."Talvez você possa me ajudar...Você sabe qual ônibus eu pego para chegar a Santana?", ela me pergunta, e sorri.

Talvez eu soubesse, mas esqueci.

sábado, 2 de janeiro de 2010

O gato e a guerra

A noite baixou; o calor era sufocante. Eu não conseguia dormir, muito menos ficar acordado: eu entrara naquele dilema entre o sono e o desconforto. Fui à sala e tomei uma água gelada para refrescar o corpo (e o espírito). Me sentei no sofá...Esperei algo novo acontecer (ora, um acontecimento já é novo, não? Há pleonasmo na frase?).  Não sei. Eu sei: dificilmente algo ocorre em uma madrugada em casa.

O silêncio só era quebrado pelo som dos automóveis; poucos, é verdade, mas constantes e cortantes. Pensei em voltar à cama... De repente ouço um miado. Fraco, mas contumaz miado. Um miado baixinho, singelo, infantil, até. Ele estava perto, logo ali talvez, do outro lado da parede, no quintal.

A essa altura minha imaginação ia longe. Um gato entrara em casa a fim de me perturbar o sono. Gatos adoram atrapalhar sonos alheios, pois eles mesmos (os gatos) nunca dormem. Eles fingem, sim, se fazem de quietos, de mortos, mas estão a nos observar: logo revelarão os nossos segredos aos monstros que vão aparecer em 2012. Aí, amigo, danou-se: seremos escravizados pelos monstros e seus gatos seguidores; quem não falar miado será assassinado; e os outros humanos, mais capazes, sobreviverão, mas nunca mais vão dormir.

Assustado, acordei do devaneio. O miado lá fora continuava. Que droga! Agora que não ia mais dormir. Fui ao quintal a fim de calar o gato. “Cale-se”, eu gritei. “Miau”, respondeu ele. São teimosos mesmos, os gatos. Finalmente o vi entre algumas plantas. Era minúsculo, um filhote. Tinha um pequeno laço vermelho no pescoço.

Não me enganei: aquele ser deveria ser posto na rua, senão nunca mais eu dormiria. E, afinal, eu já tenho um cachorro doméstico. Não preciso de gatos nem eles precisam de mim. A solução? Abri o portão, fui até a casa ao lado e coloquei o gato no quintal do vizinho. Fim.

Voltei para cama. Cinco minutos depois o miado retornou, mais singelo, clemente, até. “Esse gato não me esquece? Será que entrou em casa de novo? Mas tudo bem, vou deixá-lo lá. Amanhã decido o que fazer”, pensei, e fui finalmente me dedicar aos sonhos.

Eu dormia quando ouvi latidos ferozes. Aliás, me pareceram latidos asmáticos, como se os cachorros fumassem há anos. Fui correndo à janela da sala. Olhei. O gatinho, encostado do lado de fora do portão, estava encurralado por dois cachorros de rua. Eles latiam furiosamente, desejando a carne do felino entre os dentes. E o gatinho, coitado, tremia de medo: encolhido, não tinha aonde ir, pois não conseguia entrar no meu quintal, muito menos encontrar uma rota de fuga pela rua.

Fiquei a observar a cena, curioso. Assim mesmo, passivo, contemplando a batalha sangrenta. É incrível o fascínio da guerra, não? Torcia pelo gato, claro; ele é fraco e indefeso, pois. Os cães, ao contrário, são cruéis, mas reconheci que estavam apenas fazendo o trabalho deles. Que droga, eu nem gosto da guerra, cara. Só quero comer um hambúrguer e dormir em paz, sem questionamentos difíceis.

A briga continuou. Eu não sabia o que fazer, incapaz de reação. Lentamente, um rapaz, que puxava uma caçamba de lixo, parou em frente ao portão. Ele olhou a cena, intrigado. “Que covardia é essa?”, gritou. Pegou o gatinho com as mãos, guardou-o na caçamba e foi embora. Os cachorros perderam o alvo; eu, a noite.