sábado, 29 de agosto de 2009

A saga do amor insatisfeito

O garoto tinha um problema maior que o número de gotas de água no oceano: o amor por sua namorada sempre lhe escapava do corpo. Era incontrolável: o sentimento era tão grande, tão extraordinário, tão maravilhosamente maravilhoso, que não cabia dentro do coração pulsante. Ele fugia pela boca, pelo nariz, pelos olhos e pensamentos.

Por vezes, quando o garoto falava com outra mulher, lá ia o amor embora com as palavras feitas de encantamento...Em outros instantes, ele pulava das janelas dos olhos, passeava com o vento e decidia que o melhor mesmo era viver sozinho. O amor também voava com os pensamentos do garoto, indo pousar nos cabelos de uma loira mais linda que o sol.

O garoto não viu outra solução: resolveu trancar o corpo com uma aliança de prata na mão direita. Procurou o anel por todos os reinos, bosques e shoppings centers que conhecia. Acabou comprando duas alianças no supermercado da esquina; uma para ele e outra para o amor da namorada, para o caso de ele resolver fugir também.

Acontece que nenhum anel de prata era tão forte a ponto de trancar o amor no peito. Ele continuava fugindo do coração do garoto. Certa vez, embebedou-se de desejo, perdeu o sentido e acabou acordando na cama de uma ruiva mais linda que a lua. Nesse dia, o amor ficou tão fraco, tão magrinho, que esqueceu o nome, a cor e o significado.

“O que vou fazer?”, perguntou o garoto. Decidiu procurar ajuda: falou com bruxas, ciganas, rainhas e terapeutas de casais. Todos tinham o mesmo conselho: “para trancar o amor, você deve trocar a aliança de prata por uma de ouro, mas agora colocá-la na mão esquerda”. O garoto, esperançoso, o fez.

Por um tempo, o amor aquietou-se no peito. Não saia nem para tomar cerveja com os amigos. A namorada do garoto (agora era esposa) amansava o amor lhe preparando uma poção noturna. O líquido era feito de flores, açúcar e paciência.

Porém, num dia o amor esqueceu de tomar a poção da esposa. Conseguiu fugir. Foi embora meio à francesa, meio sem querer, querendo...Simplesmente abriu a porta e saiu com uma carta de divórcio na mala.

O amor fora embora para sentir os lábios da liberdade. Afinal, desde o início era todo esse o seu desejo: queria voar ao lado do vento para procurar uma morena mais linda que o céu.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

O céu de Amaury

Em um dia funesto, a Morte chegou a uma conclusão tão catastrófica quanto uma queda de avião: “na vida, há coisas piores que a morte”, constatou. Então, a misteriosa figura foi visitar o aposentado Amaury Guedes, 74 anos não por vontade própria, mas porque quis assim o Destino. A Morte gostou de Amaury Guedes e, como não podia dar-lhe de presente o cargo, lhe entregou o uniforme preto.

Desde então, esse homem de fala mansa persegue a vida em protestos pelo país. Foi no acidente da TAM, no buraco do metrô, na Parada gay: onde tiver um aglomerado de insatisfeitos, lá estará Amaury e a sua fantasia de morte. Talvez ele seja a pessoa que mais foi à manifestações no planeta, mas o livro dos recordes ainda não se interessou por essa marca. “Eu fico lá sentado no muro, apareço na TV, tiro fotos”, diz, com a determinação e o Bilhete Único pendurados no pescoço. Ele reivindica o fim da diminuição progressiva de sua aposentadoria especial. “Minha aposentadoria é como gelo: derrete cada vez mais”, lamenta.

Amaury Guedes percebeu o tamanho da injustiça do mundo quando teve de comprar moela e asa de galinha no lugar do filé mignon. Com a aposentadoria que tem hoje, a vida de antigamente não pode mais ser desfrutada. “Nos fins de semana, eu ia para Recife, Porto Alegre. Hoje não faço mais isso”, compara.

Esse autêntico brasileiro tem três filhos e é casado, mas tornou-se viúvo da antiga maior companhia aérea brasileira quando o governo do presidente Lula decidiu fechá-la. Hoje vive no exílio de sua própria vida, faz as contas de uma proporção inversa: poderia receber sete mil reais, mas ganha apenas R$ 1.500. Os remédios aumentaram (gasta aproximadamente 300 reais por mês com eles) e a qualidade de vida diminuiu. “Eu sou pura tristeza”, diz.

O céu das viagens que Amaury fazia como comissário da Varig é muito menor do que a sua esperança. Por isso ele luta, protesta, se veste de palhaço e de morte, viaja à Brasília para convencer senadores a ajudá-lo a retomar o dinheiro que perdeu. Recentemente, descobriu outro avião: a internet. Aprendeu que pode voar sem sair de casa, basta apenas apertar o botão de ligar o computador e postar seus textos. A única coisa que Amaury não entende é o por quê de ter perdido a pensão especial pela qual contribuiu durante 30 anos. Essa é a sua injustiça e também a sua busca: quer viver melhor, pois trabalhou para isso.

Em uma pasta de plástico, Amaury Guedes guarda as suas histórias. Orgulha-se de ter fotos e perfis sobre si publicados nos principais jornais e revistas do Brasil. São folhas e Folhas que contam a sua saga em busca de seus direitos. Amaury não desiste! É isso o que o torna tão singular, mas tão parecidos com os milhões e milhões de brasileiros que, como ele, lutam a cada dia por seu pedaço de pão (e de vida).

Não estamos em 1984 de George Orwell, mas Amaury Guedes é vítima de uma grande máquina de esquecimento coletivo. Ele e todos nós enfrentamos a gigante e impiedosa indústria que faz com que nós, jovens de idade, esqueçamos os rostos de quem ajudou na construção do Brasil. Eles, os aposentados, colocaram as peças, fizeram o motor, testaram e, no caso de Amaury, colocaram o país para voar. Cabe a nós manter o avião sem turbulências e não esquecer daqueles que ficaram no chão.

Se Amaury encontrasse a Morte novamente, com certeza ela não iria querer o seu uniforme de volta.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

As tardes de outubro

"Eu queria te explicar e tal, mas você sabe como são difíceis essas coisas para mim. Eu floreio as palavras, torno gigantes os verbos e acabo tingindo o céu do roxo e as situações de branco, para que elas fiquem mais claras. Mas não: ninguém entende o que digo ou, simplesmente, entendem o que desejam entender. O que acaba dando no mesmo. Então, vou tentar ser sucinto: eu te conheci naquela tarde de outubro, lembra? Aquela que chovia igual choveu em Macondo...Parecia mais uma tarde de janeiro, mas era de outubro mesmo, lembro de você comentando algo do tipo. Isso daria um poema, eu disse, se eu fosse poeta eu faria um poema sobre tardes de outubro que parecem de janeiro. Você pode fazer um poema com isso, mesmo não sendo poeta, você disse. Posso nada, eu disse. Pode sim, é só tentar. Então tentei, mas saiu uma merda, como tudo o que venho tentando fazer para te reconquistar. Eu sei que nesse momento você deve estar pensado: “claro, as coisas não acontecem do jeito que a gente quer, nem os poetas conseguem isso”. Mas eu te digo que sim, os poetas conseguem tudo que desejam, eles podem transformar uma vírgula em algo mais importante ou fazer de uma anotação qualquer uma linda carta de amor. Eu já te disse uma vez que se eu fosse um poeta, provavelmente eu ia pegar algumas palavras apenas para mim e depois transformá-las em outras. Eu inverteria a ordem do amor para torná-lo melhor, menos humano. Olha, eu até acharia lindo se, com o passar dos anos e das palavras, eu me tornasse um ex-poeta, mas nem nisso eu sou bom, por enquanto continuo apenas como o seu ex-namorado.Utilizei essa última frase apenas para te impressionar mesmo. Enfim, acho melhor eu parar por aqui mesmo, né? Disse que iria tentar explicar algumas coisas, mas não consegui novamente. Sou uma grande merda na sola do seu tênis!


Ainda desejo reencontrar aquele seu dom de transformar as minhas tardes.
Cuide-se".

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A normalidade segundo minha mãe

“O que é ser normal, mãe?”, perguntou este que vos fala, lá pelos anos do FHC, mais ou menos quando a Xuxa ainda fazia sucesso. “Ser normal é se encaixar nas regras que sociedade estabeleceu”, respondeu a minha mãe. Ótimo, pensei, então é muito fácil ser normal, ser anormal que é difícil.

Pessoas normais vão à padaria comprar pão, pessoas normais comem bacalhau com batata na Páscoa, compram bandeiras do Brasil em época de Copa do Mundo e, mais do que tudo, pessoas normais, quando saem do caixa eletrônico, olham com cara de surpresa para folhinha do extrato bancário.

Pessoas anormais, pelo contrário, fazem tudo fora das normas da sociedade: não suportam comer pé de galinha; odeiam feijoada, bucho e afins, não ligam a mínima para o dinheiro no banco, odeiam ir ao banheiro fora de casa e ficam intimidados quando alguém lhes chama para dançar.

Quando era mais novo, eu não era normal: não sei por que, mas eu tinha vergonha de comprar pão, eu odiava bacalhau com batata, afinal, era impossível distinguir o que era bacalhau e o que era batata e, acima de tudo, eu não sabia como alguém tirava um extrato bancário do caixa eletrônico, principalmente porque eu não fazia a menor idéia do que era um extrato bancário. Hoje, como 20 anos, eu já faço tudo isso, inclusive, olho com cara de surpresa para a folhinha.

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Na verdade, eu só gostaria de agradecer a providencial ajuda da atendente do Banco Real da Vila Mariana, que hoje, mais uma vez, salvou a minha vida, ou melhor, salvou o meu extrato. Não sei bem o nome dela, não sei se é casada nem se está infeliz em seu emprego; talvez ela seja até estagiária, o que, evidentemente, sugere a sua infelicidade. Mas enfim, é uma garota de ouro, uma garota capaz de me fazer largar a casa, a família, o cachorro e o jornalismo apenas para levar uma vida de bancário, saca? Com essas greves de dois meses ou esses uniformes verdes com um “Posso ajudar?” escrito nas costas.

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Vocês já repararam que eu ando usando muito o *** ? Sei lá, eu vi isso em algum lugar e achei demais. Coisa de anormal.