sábado, 26 de dezembro de 2009

Sobre a noite e o ano

1) Nos aproximamos do bar, cambaleando. A noite nem cobriu o céu e já filosofamos sobre o amor. As mesas do bar estão postas no lado de fora, de modo a contemplar o frescor da lua e das pessoas. Vou ao balcão. Penso no trabalho dos garçons. “Deus, como sofrem”. Do lado de fora o meu amigo conversa com dois homens e uma garota bonita. Imaginei que ela fosse modelo pela finura do corpo e a beleza do rosto. Chego mais perto para participar da conversa. “Sou do interior, moro numa república”, ela diz.

2) Andamos pela avenida, que nesta noite recebe muita gente. Talvez turistas, não sei: felizmente não descubro a origem de uma pessoa pela cara. Olho para o lado: um garoto tem um saco na mão. “Baixinho, me dá uma moeda para eu me drogar”, ele pede. Não sei quem é o baixinho, afinal ele é bem menor que eu. O que responder? A causa brasileira me é um dilema. Torto, o meu amigo grita: “Sabe qual é o nosso problema, cara? É que a gente ama demais as mulheres, porra!”

3) Nos sentamos na calçada em frente a uma farmácia. Pensei em comprar um remédio que cure a dor de cabeça. O meu amigo deita e dorme no chão: tento imaginar o que ele sonha, pois o sorriso continua na boca. Arranho um Los Hermanos, sozinho. Creio que Los Hermanos deva ser cantado assim: sozinho. Ouço um carro se aproximar. Uma mulher desce e entra na farmácia. Quando volta, olha o meu amigo. “Ele bebeu bastante, né? Tá certo, tem que beber mesmo: esse ano foi uma merda!”

Feliz ano novo!

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Olha a chuva!

As primeiras gotas caíram ralas, às quinze horas e trinta minutos. O vendedor de balas, que fazia ponto na calçada junta ao córrego, gritou: “Olha chuva!”. Todos levantaram as cabeças ao céu e viram o negrume das nuvens que cobriam a cidade: a calmaria se esvaiu juntamente com a poeira do asfalto. O chão preto ganhou nova textura, estava liso.

Na praça, um senhor deixou de lado as pedras do dominó. “Vai molhar a roupa no varal”, disse, e logo saiu correndo. Os demais velhos não compartilharam o medo e foram se esconder num açougue do outro lado da rua. “No meu tempo, não chovia tanto assim...”, lembrou um senhor, perspicaz.

O vendedor de balas guardou um pacote no bolso traseiro; em seguida tirou, não se sabe de onde, um enorme saco de guarda-chuvas: alguns eram coloridos, outros, de bolinhas amarelas sobre o fundo negro.“Olha o guarda-chuva!”, anunciou, aumentando o tom da voz por conta do estrondo das águas, que caíam forte. Uma grã-fina quis saber quanto custava um: havia esquecido o dela em casa. “Chove muito por aqui, não?”, disse, mexendo nos cabelos, que já ganhavam nova forma.

Um barulho esquisito cortou o ar: dois carros se chocaram em frente ao açougue. Os motoristas, enfurecidos, saíram dos automóveis e mancharam de água as suas camisas engomadas. “Você não sabe brecar?”, perguntou o primeiro, raivoso. “Eu sei, você que breca demais”, retrucou o segundo, com raiva.

Na rua ao lado, o senhor do varal desistiu de correr, pois se lembrou da esposa, que estava em casa e, provavelmente, já salvara as roupas da aguaceira. “A chuva logo passa”, disse a si mesmo, convencido que retornaria ao dominó. Ao caminhar, ele escorregou no piso molhado e torceu um pé. Retorcendo-se de dor, pegou o celular para ligar à ambulância. “O pior da chuva é o mundo que cai com ela”, lamentou-se.

A grã-fina arrumava os cabelos quando a água do córrego inundado lhe molhou os sapatos. “Credo!”, disse, com nojo do líquido barrento que cobria seus pés. “Eu não sabia que isso aqui alaga, moço”. O moço era o vendedor de guarda-chuvas. “Ninguém nunca sabe. Toda vez que inunda é uma surpresa”, respondeu ele, mostrando os dentes.

No açougue, os velhos lançavam conversa fora quando os motoristas acidentados trocaram socos. “Você sabe o quanto vai custar isso aqui?”, perguntou um deles – não se sabe qual –, apontando para uma parte amassada do veículo. De repente ouviram a sirene de uma viatura da polícia. “É melhor ir embora. Anota aí o meu telefone”, sugeriram ambos, parando a luta imediatamente.

O temporal diminuía aos poucos. Sentindo os pingos menores, o senhor caído levantou: estava bem, sem dor, e nada de ambulância! Os velhos do açougue retornaram à paz da praça, e à guerra do dominó. A grã-fina tirava os sapatos encharcados quando seu táxi chegou. Depois ela percebeu, espantada pela má sorte, que não tinha dinheiro para pagar a corrida.

O vendedor ainda segurava os guarda-chuvas enquanto caíam os últimos pingos. Pensou em voltar às balas. Parou um instante...Depois se virou ao céu: entre as nuvens, um raio de luz iluminava a cidade. “Olha o sol! Vai uma sombrinha aí, dona?”, gritou.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A velha cadeira

Do mesmo modo que os pais não entendem a juventude dos filhos, chega uma hora, depois da mudança dos anos, que os filhos também não entendem a velhice dos pais. Esse foi o pensamento de Daniel ao ver sua mãe sentada numa velha cadeira, um assento antigo, tão remoído pelo tempo, que ninguém tinha a melhor ideia à qual geração pertencia.

Daniel observou de longe as longas rugas da mãe. A esmo, calculou quantos seriam os anos até que a pele enrugada dela se transferisse para ele. Aos 30, não se imaginava velho, mas reconhecia que, quando jovem, também não se via adulto. A juventude é uma estrada reta; a velhice, uma rua cheia de curvas e postes.

Sua mãe, ali descansando os anos na cadeira, conhecia todos os segredos da existência de Daniel. Porém, ele, como todos os filhos, nunca chegou a conhecer por inteiro a pessoa que lhe jogou no mundo. A cada momento de sua vida uma faceta da mãe era revelada, uma recordação escondida era lançada fora. Daniel se lembrara da surpresa que sentiu ao saber que sua mãe era fã do Chacrinha; que ela, desejosa de aventura, certa vez viajou de moto às Minas Gerais; que sua amada mãe, sempre contida nos sentimentos, já sofrera por um amor perdido.

As brigas com ela, Daniel recordava sempre. Mesmo contrariado em admitir que, sim, fora estúpido algumas vezes, ele até achava graça nas discussões intermináveis por um pedaço de bife. Foram tão malucas aquelas gritarias por um lençol rasgado ou pela louça não lavada. Olhando-a agora, sentada, Daniel ressentiu-se por ter dito certa vez, com raiva na voz, que nada de bom aprendera com ela. Os filhos são quadros pintados pelos pais; depois os pais descansam e deixam os filhos criarem suas próprias pinturas.

Daniel imaginou no que sua mãe estaria pensando naquele momento. Os verdes e velhos olhos daquela senhora talvez tentassem encontrar no vazio alguma esperança de vencer o tempo. Daniel, ressabiado, concluiu que sua mãe conversava sozinha sobre a morte, sobre como seria o fim de seus anos, o último dos dias, em que lugar renasceria. Como é difícil entender os velhos, pensou. Por que o fim agora, mãe?

A curiosidade o arranhava, mas a prudência de tocar no assunto fatal era mais forte e o mantinha preso. Sua mãe viajava através dos olhos, perdida em divagações. Devagar, Daniel chegou mais perto da cadeira. Enfim, encarando o receio, perguntou.

– No que a senhora está pensando, mãe?
– Em nada importante, meu filho. Estou apenas lembrando do meu primeiro beijo.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Garotas cruéis

As três garotas entraram, olharam ao redor e decidiram se sentar ali mesmo, no chão, desprezando todos os bancos vazios daquele metrô. Não lembraram elas que a oportunidade de viajar no conforto de um banco não é para qualquer um. O fato deve ser comemorado com peito estufado e uma boa leitura nas mãos.

Mas não, a três garotas preferiram o frio e a dureza do chão preto. Lá embaixo, longe da visão dos outros, elas conversaram, riram-se, trocaram confidências amorosas, soluçaram paixões adolescentes e desprezaram a tediosa tarde das pessoas que, diferentemente delas, procuravam felicidade nesse mundo de Deus.

Enquanto elas falavam, alheias a tudo, reparei em cada uma, imaginei o por que de estarem ali. Talvez voltassem da escola, sei lá, talvez estivessem viajando a algum lugar, ou a lugar algum. Possivelmente, elas acordaram cedo e resolveram exibir seus perfis alegres por aí, causando inveja nos idiotas que ainda se preocupam com as responsabilidades e infelicidades do trabalho (e da vida). Não há nada mais deprimente que ver nos outros a felicidade que não se enxerga em si próprio.

Uma das garotas era uma loira de cabelo curto. Aquele curto que migra entre o masculino e o feminismo. Lindo, intrigante e instigante. O mistério das loiras mora em seus cabelos, naturais ou não. Ela vestia uma calça preta, uma sandália roxa e uma camiseta branca onde se lia: “Drink like a man”.

A outra garota sentada no chão era mestiça. Em seus olhos puxados, uma mistura de culturas. No oriente de seu corpo, viajei feliz ao Japão, voei em seus campos de trigo, imaginei conversas com gueixas e samurais centenários. Do outro lado do mundo, aquela linda garota usava All Star e camisa de banda de rock.

Por fim, a terceira integrante do grupo era morena de olhos azuis. O mistério das morenas está na conquista: quanto tempo demora a nos apaixonarmos por elas? A morena sorria, feliz por estar ali, sem saber que também estava aqui, em mim. Olhava para as amigas e se achava nelas. Magrinha, mas esbanjando presença, ela era a mais bonita das três.

Durante um longo período eu as observei, absorto. Somos enormes nos sonhos e tão pequenos em pesadelos...complicado mesmo é acordar e nos descobrirmos do tamanho real. A realidade dói, a infelicidade destrói...Garotas cruéis essas três no chão do metrô. Felizes e cruéis.