sábado, 27 de março de 2010

Quero-quero

Ontem, no meio de uma rua Taquari lotada de festeiros universitários, ouvi alguém sussurrar uma pergunta: “E aí, o que você quer da vida?”. A questão, obviamente, não foi dirigida a mim, mas bem que poderia ter sido.

Quero tantas coisas na vida, meu caro. Quero dormir menos, por exemplo, pois enquanto sonho o mundo se realiza; quero perder a razão, às vezes, mas, se eu gritar, não me ouça; quero aprender novas palavras, mas que elas não me prendam, por favor; quero viajar até a lua, só para convidá-la a participar dos meus poemas; quero escrever poemas; quero pensar menos nos romances e ser mais romântico; quero ler Cortázar, Dostoievski e Leminski; quero conquistar a minha vizinha bonita;  quero tocar todas as nuvens no céu de seus olhos azuis. Quero acreditar menos nos outros e mais em mim; quero tirar mais fotos, pois no futuro precisarei enxergar o passado; quero me dedicar mais aos amigos, com certeza: ao Ivan, por exemplo, quero explicar que nada apodrece por completo, que sempre sobra algo dentro de nós; à Nathália quero escrever uma carta maneira (ou mineira); quero dizer ao Sato que o último beijo é melhor que o primeiro. Quero você...sim, você que hoje me lê, quero que me leia amanhã também. Não quero dizer adeus, mas quero ir embora e nunca mais voltar. Quero beber menos e ficar mais bêbado; quero insubordinar minhas frases; quero usar menos o “mas”. Mas, mas... Meu caro, só quero mais, só quero mais de tudo um pouco. Quero nada e qualquer coisa!

sábado, 20 de março de 2010

18 de março, quinta-feira, na papelaria e, posteriormente, no trem

Certa vez, Ignácio de Loyola Brandão confessou já ter usado 4.619 blocos de notas em sua vida de jornalista e escritor. Segundo ele, essa obsessão surgiu depois de ler a biografia do americano Ernest Hemingway – romancista que acreditava piamente no poder do bloquinho para quem deseja escrever bem. Eu, minúsculos frente aos dois, tenho a incrível marca de cinco blocos de notas nessas 21 primaveras.

Juntamente com o microfone, o instrumento símbolo do jornalista é o bloquinho. Em suas micro-folhas são observadas as situações interessantes, criadas as reportagens e reproduzidos os discursos e as frases que mudarão o mundo. O bloco de notas (ou as cadernetas, como preferem alguns) é um reservatório de ideias e impressões.

Nessa semana, eu precisava de bloquinhos, pois o meu TCC já estava à vista: anotarei muitas coisas, imagino. Fui à papelaria da São Judas – a universidade onde estudo. Comprei dois iguais, pequenos e de capa azul-marinho. Não há paisagens na capa, infelizmente.

Encontrei o meu professor Miguel Frias na saída da loja. Batemos um longo papo sobre a palavra e as suas diferentes formas. Na verdade, pouco falei, incapaz que sou. Ele discorreu sobre a diferença entre a escrita científica e a literária. “Na ciência, não podemos dar margem a diferentes interpretações. A literatura é o oposto: o escritor não se prende à exatidão”, disse. O Miguel, que também é poeta, fechou a conversa com uma frase singular: “Escrever é transcender”.

Saí do papo com a frase na cabeça. Transcendência? Como assim? E eu, pobre de palavras, que nunca saí do chão? O que farei? Vou-me embora para casa, porque lá sou filho da minha mãe, pensei, e fui. No trem, quis escrever algo no bloquinho: uma palavra, uma frase, uma crônica, um texto revolucionário... Eu estava cheio de ideias e as folhas continuavam virgens.

Inspirado no Miguel, me lembrei de algumas definições para o ato da escrita. Para José Eduardo Agualusa, “escrever é uma irresponsabilidade”. João Gilberto Noll disse: “escrevo para não ter que matar alguém”. O roteirista americano Syd Field acredita que “escrever é a melhor forma de perguntar e obter respostas”. A cantora angolana Kianda revelou: “escrevo para iluminar os corredores de minha alma”. Até eu já disse que “escrevo para conquistar a minha vizinha bonita”.

Mas, de verdade, porque escrevo agora? Vou escrever sobre uma rua e nem mesmo conheço os caminhos da minha vida. Por que deixei de plantar uma árvore ou salvar uma vida ou cantar uma música ou lavar o banheiro ou viajar pelo mundo ou criar os filhos que ainda não tive para, justamente, buscar palavras no céu de minha mente? Por que escrevo agora?

De repente senti um sono provocador. Encostei a cabeça na parede do trem e cochilei por alguns minutos. Assim que acordei, tive a revelação. Puxei a caneta e, rápido, anotei no bloquinho: “Escrevo porque preciso dormir à noite”.

quarta-feira, 17 de março de 2010

16 de março, terça-feira, no Cinesesc

Como vocês sabem, o Cinesesc é a unidade voltada ao cinema do Sesc São Paulo. Fica na Augusta, 2075, descendo para os Jardins – o lado sóbrio da rua. O espaço abriga uma ampla sala de projeção, com uma tela de razoável grandeza. As poltronas são de um couro preto e confortável, perfeitas para quem deseja dormir um pouco.

Trabalhei por dois anos no Sesc Vila Mariana, que fica mais ou menos perto da rua Augusta. Como eu saía ao meio-dia da faculdade e entrava apenas às 16h no trabalho, passei boas horas nas poltronas negras do Cinesesc. Eu tinha muito sono durante o dia, então, como não pagava a entrada por ser funcionário, eu corria para o cinema a fim de descansar.

Dormindo, perdi os maravilhosos filmes austríacos, deixei de ver pérolas do cinema malaio, não me diverti com nenhuma comédia israelense e, infelizmente, não dei a mínima para todos os problemas do leste-europeu, pois, enquanto eles eram escancarados na tela, eu sonhava com alguma donzela de minha cabine particular.

Resolvi voltar ao Cinesesc nessa semana. Joguei fora o lado sonhador de minha vida e decidi assistir ao filme, finalmente. Escolhi “A Fita Branca”, do diretor alemão Michael Haneke. Adorei! Apesar de duradouro e duro em alguns momentos, o longa é realmente muito bom!

Mas o que tudo isso tem a ver com o meu TCC? Bom, está em cartaz no Cinesesc a exposição “Augustas”, do fotógrafo Eder Chiodetto. São dezenas de fotografias que mostram a diversidade da mais democrática rua da cidade: com uma câmera analógica, o artista capturou olhares, pessoas, carros, luzes, brilhos, momentos...Eder conseguiu imagens que chegam perto da abstração.

***

Quando saí do Cinesesc, a noite estava imensa. O céu era de um azul sereno, tranquilo. Andei um pouco... Logo parei em um farol de pedestres. Por dois minutos ele se manteve fechado: um pequeno número de pessoas se amontoou, esperando. Os carros corriam no asfalto... Quando o farol abriu, tive a sensação: essa rua é meio viva, não?

segunda-feira, 15 de março de 2010

13 de março, sábado, na rua Augusta sob o sol forte

Escrevo hoje, na segunda-feira, mas os fatos se deram no sábado, 13 de março.


Desci na estação Anhangabaú, às 16 horas. A Karol, minha amiga publicitária, não estava lá,  diferentemente do que havíamos combinado ao telefone. Sua pressão caiu e ela se atrasou por uns 30 minutos. O calor estava perto dos 35 graus. A temperatura sobe e a pressão sempre desce, deve haver uma proporção macabra nisso.

A Karol mora perto da Augusta, na rua da Abolição (achei o nome sugestivo). Pedi a ela que me acompanhasse nesse primeiro dia, pois, vivendo ali, conhece a região melhor que eu.

Andamos, pois, dentro do forte calor. O ar estava quente e o vento era pouco. Paramos em uma padaria já no início da Augusta. Compramos uma água por R$ 2,20, o que nos deixou indignados. “Uma garrafa tão pequena por esse preço?”, perguntei, sedento.

Mais acima, alguns adolescentes esperavam a abertura de uma balada que eu não conhecia. “Deve ser matinê”, comentei com a Karol. Os jovens vestiam roupas pretas e justas – não se importavam muito com o calor.

Enquanto subíamos a rua, tentei explicar o meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) à Karol: “É um livro-reportagem sobre a Augusta, mas o foco principal será um salão de cabeleireiros. Quero falar da rua a partir do salão, entende? Como um ponto de encontro”. Silêncio. “Bom, não entendo, mas tudo bem...vamos procurar”.

Passamos por três salões. Nenhum se encaixou no “perfil”, seja lá qual era o perfil. A Karol se lembrou de um salão. “Sempre tive curiosidade de entrar lá”, confessou. Procuramos, então. Sem sucesso. Subimos, descemos, subimos novamente, voltamos, e nada. Quase desistindo, resolvi atravessar a rua para ter outra visão. Deu certo, em dois minutos achamos o dito: já havíamos passado por ele algumas vezes.

Giva! É como se chama o salão. Giva. Se fosse Diva, eu já teria o nome do livro. Fiquei com receio, a princípio. A coragem me abandona antes de entrevistas, depois eu me solto. Entramos, e o medo tremeu em minhas mãos. Expliquei o trabalho ao Marconi, a primeira pessoa a me atender. Ele aceitou de primeira. Não fez pergunta alguma, o que me deixou sem jeito.

Ao lado, em frente ao espelho, uma cabeleireira passava alguma coisa branca na cabeça de um homem. Os dois eram contemplados por um poodle magrelo e barulhento. No balcão, um homem/mulher olhava o Orkut por um notebook. A Karol, sentada em um pufe, mexia no celular. Eu, nervoso, ainda tentava explicar o livro ao Marconi.

De repente entrou um mendigo. Ele parou e, aos gritos, se dirigiu ao poodle: “Você está em choque, cadela? Diz, você está em choque?”. Em seguida, o homem passou uma das mãos na peruca loira de um manequim que estava na entrada. Ele desceu os dedos e apalpou com força os seios da boneca. A cena durou alguns segundos. Depois, se virando depressa, foi embora.

Tudo continuou como se nada houvesse ocorrido...