sábado, 25 de abril de 2009

O Brasil tem jeito

Nego Leléu, célebre personagem do romance Viva o povo brasileiro, do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, talvez seja, na literatura, um dos maiores exemplos do que popularmente chamamos de “jeitinho brasileiro”. Por meio de formas especiais de resolução de problemas (inclui-se aí presentes a fiscais do comércio, bajulação a possíveis inimigos e planos mirabolantes para escapar dos impostos) Nego Leléu, recém alforriado, sobe na vida, ganha dinheiro e admiração dos políticos da época em que se passa a história, em meados do século XIX.

Poucas são as obras do universo acadêmico que destrincham-se sobre o “jeitinho”. Por ser um tema tão intrínseco no cotidiano brasileiro, o “jeitinho” merece, sim, ser tratado com melhor jeito, com o perdão do trocadilho infantil. Mais recentemente, apenas o livro Jeitinho brasileiro, a arte de ser mais igual que os outros (Editora Campus), da pesquisadora carioca Lívia Barbosa, faz uma longa abordagem do assunto.

Os termos “jeitinho” e “corrupção” são claramente diferenciados segundo o levantamento realizado pela pesquisadora com a população. “Corrupção é para os políticos”. Jeitinho vem das ruas, pode acontecer com todo mundo, é um favorzinho. “Hoje eu preciso, amanhã será você”.

Enfim, o que é esse tal jeitinho brasileiro? Qual a sua origem? De onde vem essa maneira tão singular de resolver os problemas e situações embaraçosas? Segundo Lívia Barbosa, o jeitinho vem de três questões básicas: a pouca distinção que o brasileiro faz do que é público e do que é privado; a exagerada burocracia no país e a grande diferença entre as leis e o que é aplicado verdadeiramente no cotidiano, nas ruas.

A visão do brasileiro sobre o público e o privado, como citado anteriormente, contribui para a propagação do jeitinho. O individual está, muitas vezes, acima do social, acarretando, infelizmente, na utilização de recursos públicos para benefício próprio ou privado, como recentemente ficou claro com o escândalo da compra de passagens aéreas pelos parlamentares com o dinheiro do contribuinte. Mas não só o político se aproveita dessa relação: também os funcionários públicos, os fiscais de trânsito, os policiais, jornalistas que utilizam o jornal (espaço público!) para divulgar brigas pessoais e picuinhas sem o menor interesse social.

Historicamente, podemos identificar o processo colonizador como um dos possíveis responsáveis pelo jeitinho: tanto nos fala Gilberto Freyre, em Casa-Grande e Senzala, da confusa administração portuguesa no Brasil, com suas numerosas leis, alvarás, estatutos e cartas do rei. Isso tudo gerou confusão entre os colonos, que geralmente não conheciam a “lei do dia”, colaborando, enfim, para diferença cabal entre o que está escrito e o que é aplicado na prática. Freyre nos conta também das leis próprias de cada engenho, onde o Senhor era o rei, ele ditava as regras, as leis, os castigos, entre outras coisas.

Também a burocracia, tão difamada, constrói barreiras instransponíveis para o desenvolvimento social tupiniquim. A título de exemplo, segundo pesquisa realizada em 2007 pelo Banco Mundial, para se abrir um negócio no Brasil são necessários, em média, 152 dias. Os números mostram também que apenas o Chade, na África, ultrapassa o Brasil em número de etapas necessárias para a abertura de uma empresa. Pontos como esses indicam o porquê de tantos brasileiros partirem para informalidade, vendendo produtos falsificados ou contrabandeados.

Outro aspecto importante na análise social do jeitinho brasileiro é a preferência nacional pelo malandro: aquele sujeito que tudo resolve, que tem jeito para todas as situações, habilidoso com as palavras e no vestir, galanteador, sedutor. Um exemplo disso pode ser visto no esporte bretão: no futebol, o jogador mais habilidoso, aquele que resolve o jogo numa jogada bonita, inventiva, é sempre o preferido. O pragmático, eficiente, previsível e regular, é descartado, muitas vezes considerado “brucutu”. Por isso Kaká, Diego ou Raí são preteridos ao Romário, ao Ronaldinho Gaúcho, ao Robinho.

Diferentemente dos países orientais, como o Japão, onde preza-se muito a previsibilidade, o brasileiro tem por tradição ser criativo, se ajustar às necessidades, ter a famosa ginga. E isso não é ruim, pelo contrário, é importante. A questão principal é não transformar toda essa capacidade em algo ruim, depredador da ética, pois no Brasil, infelizmente, com todo esse jeito, provamos ser verdadeira teoria mais importante do século passado: aqui tudo é relativo.

sábado, 18 de abril de 2009

Tudo é relativo!

Os sonhos se encontram. Sim, cada vez que dormimos, os sonhos nos roubam a imagem física e fogem de nossas cabeças, levantando vôo. Voam tão longe, tão longe, que ultrapassam os limites das casas, passam desesperados pela fiação, resvalam nas ondas das telecomunicações e, às vezes, batem em outros sonhos.

Certa vez um garoto e uma garota se encontraram em sonho. Os sonhos dos dois se chocaram mais ou menos perto do trópico de câncer, na esquina da quinta estrela a leste, onde, dizem, morou por alguns anos o Divino. Foi amor no primeiro sonho. Amor? Mais que amor! Foi algo extraordinário, acima da compreensão de qualquer um, algo eterno, parece que criado quando ainda não havia nada, só poeira cósmica. Então o garoto e a garota decidiram se encontrar fora dos sonhos.

Mas às nove horas do dia dezenove de fevereiro do ano da graça de dois mil e nove, o garoto e a garota, amantes em sonho e fustigados pelo ardor incessante em seus respectivos corações, chegaram a constatação mais esclarecedora que se poderia encontrar desde a teoria da relatividade: não há nada, nadinha de nada, merreca de nada, nada de coisa nenhuma, nada, absolutamente nada mais difícil que encontrar o seu amor.

– Sim – pensou o garoto – considerando que o planeta não passa de uma pequena ervilha na imensidão do universo, que a história da humanidade começou nos últimos momentos do segundo tempo e que, por fim, tudo foi criado por Deus para realmente não dar certo, então, poderia ser perfeitamente cabível se ela, a garota dos meus sonhos, aparecesse aqui e agora.

Mas não, ela não apareceu e eles não se conheceram. Tudo aconteceu assim: o relógio quebrou, o chuveiro queimou, na padaria o pão acabou, o café amargou, a mãe deu bronca, o pai não a levou de carro, o ônibus atrasou e o sinal abriu na hora errada. Tudo isso fez com que garota perdesse a oportunidade de tropeçar na calçada de uma determinada rua e de ser ajudada a se levantar pelo garoto dos seus sonhos, passante por acaso.

– Não – pensou a garota – as coisas realmente não são planejadas para acontecer da maneira correta. Tudo é um grande e terrível acaso, acaso este que quando acontece cria um buraco negro que chupa todos os ingredientes da vida e os transforma em amor: amor salgado, amor doce, amor azedo, amor amargo, amor com gosto de sorvete, amor de gelatina, amor de morango e amor de chocolate.

Mesmo assim nada dava certo. O garoto e a garota não se encontraram pessoalmente, mas continuaram se vendo em sonho: combinaram encontros, cinema, peças de teatro, pipoca no parque, presentes exóticos, lágrimas de alegrias, a forma como segurariam a mão do outro (a sua esquerda e a minha direita); combinaram também as brigas por ciúme, as brigas por besteira, as brigas sem motivo e as brigas que causam outras brigas; marcaram os desencontros causais, os pedidos de tempo, a separação e a volta com olhos marejados.

Finalmente, a garota e o garoto perceberam que as coisas do amor precisam ser planejadas com antecedência; o acaso não funcionou, tudo ainda não passava de um lindo sonho. E em sonho, o amor não é o mesmo. Era preciso dar um basta e partir para a realidade. Então, a garota resolveu elaborar uma fórmula quântica-físico-matemática que lhe revelaria, se resolvida, onde estaria o seu amor. A fórmula dizia o seguinte:

– A aritmética do amor se resume a uma equação de mais ou menos: ache a raiz quadrada do positivo, depois subtraia pelo negativo, aumente o positivo duas vezes, divida o negativo pelo positivo, multiplique por três o positivo e eleve à quinta potência o negativo. O resultado será mais ou menos o correto.

O garoto, por sua vez, descobriu um outro jeito de encontrar seu amor em sonho: escrever poemas cifrados em todas as notas de dinheiro para que a garota visse e o encontrasse em determinado lugar.

– As palavras são seres ruins – pensou o garoto – elas brigam comigo e eu discuto com elas sem parar. Escrever é uma tortura, uma batalha sem fim. Não há rima, não há ritmo, não há nada em toda a sua inexistência. Um nada que não passa de um grande depósito de caracteres. As palavras prestam tanto quanto os homens.

Mas, infelizmente (ou felizmente), a fórmula falhou, os poemas no dinheiro também, tudo falhou. O amor falhou. E os dois desistiram do desejo de se encontrarem realmente. Às vezes, os sonhos se chocam novamente, mais ou menos perto do trópico de câncer, na esquina da quinta estrela a leste, onde, dizem, morou por alguns anos o Divino. Mas ambos sabem, mais do que nunca, que agora é esquecer o outro, pois tudo, tudo, mais que tudo, tudinho de tudo, absolutamente tudo, tudo foi criado para não dar certo.

sábado, 4 de abril de 2009

O Bar Cansado

Eu sei, eu sei: bar é assunto recorrente neste blog vil. E ninguém precisa me xingar por voltar ao tema. Sou apenas um carinha ali sentado no canto, apreciando alguma cena inusitada ou, para variar, pensando em algum lírio oriental perdido no ocidente. São coisas da vida.

Mas eis que, ontem, conversando com o Vinícius, nobre e destemido calouro de jornalismo, ele solta a seguinte frase filosófica:
– Os bares daqui da São Judas são ruins, são tipo bar cansado!

Pronto: não poderia o ilustre colega classificar melhor a tão famosa modalidade de bares sem açúcar que teimam em existir por aí. Ou seja, aqueles bares que não empolgam nem o maior dos bêbados. É um bar sem o calor dos bons, um bar cinza, sombrio, solitário, sem identidade! Não merecedor da sublime e lubrificante alcunha de bar. É um bar-menor, como diria o poeta.

O dono do bar cansado geralmente tem nome aristocrático: Lúcio Rodolfo, ou Geraldo Cristão, ou Perilo Ambrósio. Nada de apelidos proletários, do tipo Betão, Seu Zé, Peruca, Careca, enfim, nomes comuns de dono de bar legal. Os garçons, ah, esses são os piores no bar cansado: não têm a ginga dos garçons de bar legal, que conseguem atender convincentemente cinco mesas ao mesmo tempo e ainda conversar sobre o último gol do Ronaldo com dois corintianos, dois são-paulinos, um palmeirense e um velhinho santista.

Freqüenta o bar cansado aquele cidadão estressado, tristonho, depressivo, impreciso, que come creme de milho e acha maravilhoso, mais ou menos um vilão de novela, saca? Sujeito sem jeito. Que não sabe beber como se deve, pois prefere ser social. Não ficam bêbados nunca, não dão vexame, não curtem a fossa do fora, não cantam o último sucesso da Xuxa.

As mulheres do bar cansado são diferentes também: não apaixonam ninguém, olham sempre para baixo, não vão ao banheiro na hora certa, não desdenham do cara bonitão, não dormem em cima da mesa. Nada disso. A mulher do bar cansado é um dos cinco tipos de mulheres inclassificáveis que tanto me fala Ivan, o Terrível.

Ah, para terminar, o bar cansado nunca, absolutamente nunca, consegue fazer com que o seu freqüentador, tão bêbado, diga:

– Seu Zé, me vê uma cerveja, pois eu quero comemorar a última vez que bebo!