quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Notícia menor

Há treze anos, eu estava na primeira série do ensino fundamental. Em 2010, vou para o último ano na faculdade e, por incrível que pareça, ainda me lembro de muitos detalhes daquele período em que o mundo era muito maior do que hoje. A minha classe, por exemplo, era gigantesca, enorme mesmo; nas paredes, o planeta inteiro estava grudado em mapas de papel. A Áustria e a Líbia eram ali do lado, assim como os Estados Unidos, que estavam ao alcance de minhas mãos.

Para lembrar alguns amigos: estudavam comigo o Luciano, o Cristiano, a Suelen, a Jaqueline, o Michel, o Ivan, o Renato, a Camila e a outra Camila (que tinha o carinhoso apelido de “Ó”). A professora era a senhorita Mirian, uma moça gordinha mas amorosa, que faltava à aula constantemente por conta de uma doença nas cordas vocais: a tristeza caía forte sobre nós quando ela não comparecia; voltávamos cabisbaixos para casa, com a mochila nas costa e a saudade transbordando pelos olhos.

Naquele ano mesmo, eu e o Luciano decidimos pelo jornalismo. Nós editávamos um glorioso e aventureiro jornalzinho, cujo nome não me lembro. Eu era o responsável pela cobertura do nordeste, de modo que percorri o sertão inteiro em busca de notícias bombásticas e calamitosas, mas encontrei apenas a triste história de um boi solitário que fora atropelado por um carro.

Recordo-me também de um caso totalmente inusitado que aconteceu comigo naquele ano. Se fosse permitido ao repórter contar suas próprias histórias no jornal, essa entraria em uma edição do nosso periódico infantil. Creio que o leitor, o antigo ou de agora, não veja muito interesse no fato; reconheço a inutilidade e a falta de cabimento do episódio. Mesmo assim, vamos a ele.
   
Eu, ansioso por aprender, resolvi apontar o lápis sozinho, sem a ajuda providencial da professora Mirian. É claro que sempre fui corajoso, por isso decidi não usar o famigerado apontador, mas sim um perigoso estilete que acompanhava o meu estojo. Resultado: cortei o polegar. Não foi um simples corte, não! Era um corte enorme, uma fenda no meio do pequeno dedo; parecia um vulcão: o mesmo vulcão que a minha professora tinha me mostrado naquele mesmo dia.

Acho que metade do sangue do meu corpo foi embora naquele dia. Simplesmente se derramou na pia do banheiro dos meninos. Hoje, depois de tantos anos, creio que aquele líquido vermelho poderia ter salvado algumas vidas no hemocentro ou, quem sabe, ter sido doado a algum laboratório de pesquisa do sangue de crianças idiotas.

Enfim, chegando em casa, fiquei com um medo terrível de minha mãe brigar comigo por causa do corte. "Onde já se viu? Com esse dedo pela metade você não vai mais poder fazer a lição de casa", eu imaginava seus gritos. Então, eu escondi o dedo. Sim, coloquei-o no meio da mão, bem protegido pela palma e também pelos outros dedos, responsáveis pela guarda. Daquele dedo cortado minha mãe não chegaria perto.

Fiquei uns cinco dias assim, com o dedo escondido e seguro. Acontece que o dedo não sarava. Continuava lá, parado, mortinho da silva, despejando sangue aos montes. Não sabia o que fazer, afinal de contas, eu ainda era novo para procurar um médico. E será que existia algum médico apenas para os dedos? A aflição me afogava: será que meu dedo ficaria daquele jeito para sempre?

Mas, não. Um dia eu acordei bem cedo. Minha mãe, esperta, estava ao meu lado. Não deu tempo de esconder o dedo novamente. “Você está com algum problema no dedo? Ontem você estava segurando ele sem parar?”, ela perguntou. Não havia saída: tive que mostrar o dedo pra ela. Mas aí aconteceu o milagre. Não havia mais corte, nem pedaços de pele. Não havia sangue. Meu polegar estava perfeito, sem corte nem cicatriz. “Eu, segurando o dedo? Como assim, mãe?”, perguntei.

4 comentários:

Renato Oliveira disse...

Lembranças assim possuem um significado tão único. ;]

Jefferson Sato disse...

Você é o Wolverine? Da noite pro dia seu dedo sara? Como assim!?

Nath disse...

Le, esse foi o texto mais lindo que voce ja escreveu ate hoje (a meu ver, claro).

trecho preferido: "Então, eu escondi o dedo. Sim, coloquei-o no meio da mão, bem protegido pela palma e também pelos outros dedos, responsáveis pela guarda. Daquele dedo cortado minha mãe não chegaria perto."

:)

guarda isso tudo ai, que voce ainda vai escrever um livro!

Maíra disse...

Ainda estou curiosa pra saber qual era o nome do jornal.


"ou, quem sabe, ter sido doado a algum laboratório de pesquisa do sangue de crianças idiotas."

E você não me parece ter sido uma criança idiota, não, moço. :D