sábado, 20 de março de 2010

18 de março, quinta-feira, na papelaria e, posteriormente, no trem

Certa vez, Ignácio de Loyola Brandão confessou já ter usado 4.619 blocos de notas em sua vida de jornalista e escritor. Segundo ele, essa obsessão surgiu depois de ler a biografia do americano Ernest Hemingway – romancista que acreditava piamente no poder do bloquinho para quem deseja escrever bem. Eu, minúsculos frente aos dois, tenho a incrível marca de cinco blocos de notas nessas 21 primaveras.

Juntamente com o microfone, o instrumento símbolo do jornalista é o bloquinho. Em suas micro-folhas são observadas as situações interessantes, criadas as reportagens e reproduzidos os discursos e as frases que mudarão o mundo. O bloco de notas (ou as cadernetas, como preferem alguns) é um reservatório de ideias e impressões.

Nessa semana, eu precisava de bloquinhos, pois o meu TCC já estava à vista: anotarei muitas coisas, imagino. Fui à papelaria da São Judas – a universidade onde estudo. Comprei dois iguais, pequenos e de capa azul-marinho. Não há paisagens na capa, infelizmente.

Encontrei o meu professor Miguel Frias na saída da loja. Batemos um longo papo sobre a palavra e as suas diferentes formas. Na verdade, pouco falei, incapaz que sou. Ele discorreu sobre a diferença entre a escrita científica e a literária. “Na ciência, não podemos dar margem a diferentes interpretações. A literatura é o oposto: o escritor não se prende à exatidão”, disse. O Miguel, que também é poeta, fechou a conversa com uma frase singular: “Escrever é transcender”.

Saí do papo com a frase na cabeça. Transcendência? Como assim? E eu, pobre de palavras, que nunca saí do chão? O que farei? Vou-me embora para casa, porque lá sou filho da minha mãe, pensei, e fui. No trem, quis escrever algo no bloquinho: uma palavra, uma frase, uma crônica, um texto revolucionário... Eu estava cheio de ideias e as folhas continuavam virgens.

Inspirado no Miguel, me lembrei de algumas definições para o ato da escrita. Para José Eduardo Agualusa, “escrever é uma irresponsabilidade”. João Gilberto Noll disse: “escrevo para não ter que matar alguém”. O roteirista americano Syd Field acredita que “escrever é a melhor forma de perguntar e obter respostas”. A cantora angolana Kianda revelou: “escrevo para iluminar os corredores de minha alma”. Até eu já disse que “escrevo para conquistar a minha vizinha bonita”.

Mas, de verdade, porque escrevo agora? Vou escrever sobre uma rua e nem mesmo conheço os caminhos da minha vida. Por que deixei de plantar uma árvore ou salvar uma vida ou cantar uma música ou lavar o banheiro ou viajar pelo mundo ou criar os filhos que ainda não tive para, justamente, buscar palavras no céu de minha mente? Por que escrevo agora?

De repente senti um sono provocador. Encostei a cabeça na parede do trem e cochilei por alguns minutos. Assim que acordei, tive a revelação. Puxei a caneta e, rápido, anotei no bloquinho: “Escrevo porque preciso dormir à noite”.

6 comentários:

Tatiane disse...

"Cave primeiro, depois escreva" - David Abott.

Eu sei lá porque, mas o seu texto me fez lembrar dessa frase; a minha conselheira única nas batalhas terríveis travadas contra as folhas em branco da vida.

Maíra disse...

A gente faz as coisas mesmo sem que o porquê esteja claro nas nossas mentes: a gente sabe que há um motivo, mas ele só se revela nas horas mais inesperadas. Gostei do teu motivo pra escrever. E gostei to texto. :)

Adh2BS disse...

Bom dia, atormentado artífice das palavras. Fernando Sabino tem uma crônica sobre essa angústia que se abate sobre os escritores, onde desfia uma porção de opiniões sobre o assunto. Minha predileta (não lembro de quem, no momento) é aquela que diz "escrever é como bater um papo consigo mesmo, e a medida que o tempo passa a conversa vai ficando cada vez mais interessante".
Grande abraço,
Adh2bs

Adhemar Juan disse...

Realmente, cada um tem o seu motivo pra escrever. Acredito que uma frase que caberia bem, seria "Escrevo porque o deadline está logo aí", mas atendo-se a escrita por vontade própria, "Escrevo para desabafar" é minha predileta.

eduardo disse...

hahahaha
boa garoto, maravilha de texto!
preciso de um bloquinho desse para dormir mais!
abracos!

Leandro disse...

Atualizando...
Hoje li uma frase do Caio Fernando Abreu que achei legal: "Escrever é enfiar um dedo na garganta".