sábado, 9 de janeiro de 2010

Talvez

O salto alto produz um barulhinho característico ao tocar o solo: um clique, um estrondo abafado pela inconstância do chão. Calçando uma plataforma de doze centímetros, a loira caminha, andando rápido: leva nas pernas uma pressa desconhecida; talvez fuja de alguém, sei lá, talvez corra atrás da vida. De onde vem ela eu não sei, não sei aonde vai também.

O salto continua a produzir o clique enjoado. A loira anda carregada, pois a alma lhe pesa nas costas. O contorno dos olhos revela que chorou nas últimas horas: talvez tenha perdido um amor, um namoro, uma possibilidade...Para mim, perder uma impossibilidade é pior. Talvez eu ame mais o impossível.

Ela dá mais alguns passos e para exatamente no ponto de ônibus onde estou. “Que loira!”, concluo, infeliz da vida. Olho para ela, que por instinto retribui o gesto. “Que simpática!”, penso, e por um momento acredito em anjos. A loira, por sua vez, se vira para encarar os coletivos que chegam aos montes.

Sem mais nem menos ela se embaralha no salto, tropeça e cai de joelhos no chão. “Posso ajudar?”, pergunta um garoto, feliz com a eficiência do salto. A loira balança a cabeça. “Claro”, diz. O rapaz segura sua mão e a levanta. Imagino uma cantada brega para o momento: o garoto, sorrindo, poderia muito bem dizer “posso te levantar até o céu, se quiser”. A loira responderia, prontamente: “Sabe, também posso te levantar ao céu”.

Nunca fui bom em cantadas. Aliás, tenho certa desconfiança do ato. Frases feitas me incomodam profundamente. “Eu te amo”, por exemplo, é a maior das frases feitas. Quem a criou, não sei: talvez Adão, quando ficou sem falas melhores para dizer à Eva. É claro, não vou mentir: tenho minhas frases feitas, mas sou um fiel seguidor do acaso e da eventualidade.

Mecanicamente, a loira dispensa o rapaz. Sorri, apenas. Não há armas contra o sorriso, penso.

Duas garotas, ali encostadas no muro pichado, observam-na. “Que loira!”, diz a menor. “Não sei, ela me parece perdida”, reflete a outra. Afinal não são todas perdidas, as loiras? “Vocês podem me ajudar?”, pergunta a loira às garotas, que confirmam com a cabeça. Infelizmente não entendo o pedido. Talvez a loira, cansada, admitisse: “Que droga, briguei com meu namorado, quero esquecê-lo”. E uma das garotas responderia: “E eu com isso, minha filha? O amor é solitário, porra!”.

Meu ônibus passa, e eu o deixo passar: mais uns minutinhos ao lado da loira não caem mal. Ela se vira e olha diretamente para mim. Logo imagino uma declaração de amor: “Olha, eu nem te conheço, mas te achei lindo. É Leandro o seu nome, né?”. Talvez queira apenas falar mal do ex-namorado: “Leandro, ele me traiu 489 vezes”.

Ela continua a me olhar. Se aproxima mais. Fico intrigado: o que quer? Essa mulher tornou-se uma dúvida para mim, um talvez..."Talvez você possa me ajudar...Você sabe qual ônibus eu pego para chegar a Santana?", ela me pergunta, e sorri.

Talvez eu soubesse, mas esqueci.

2 comentários:

Jefferson Sato disse...

Só consigo pensar: de onde essa criatura poderia ser? Perdida e desastrada. Até que isso é atraente.

Maíra disse...

"Talvez eu soubesse, mas esqueci".


Engraçado como isso acontece sempre em situações nas quais o lógico seria lembrarmos, mas talvez porque o ar do esquecimento tenha um charme a mais...