sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Elas

Marcela
Ela é doce como brigadeiro, mas é capaz de ficar tão amarga quanto o agrião. Marcela coleciona luz, ou seja, é fotógrafa. Ela aponta sua Cyber shot para o alto e prende as nuvens com formatos estranhos. Já capturou nuvem passarinho, nuvem coração, nuvem peixe e nuvem tristeza. Para Marcela, o céu tem humor: quando ele fica zangado, manda litros de água abaixo; na felicidade, o céu se mancha de azul, cola no chão e conversa com alguma árvore faladeira. Marcela acredita no amor.

Gabriela
Ela dorme à tarde, estuda de manhã e sonha à noite. Gabriela já sonhou que era muitas coisas: um passarinho, uma nuvem e um peixe. A moça quer ser aeromoça, pois deseja que o céu mande alguém para lhe roubar o coração. Gabriela não bebe água, mas se alimenta de luz, pois clareia o pensamento, segundo ela. Se pudesse escolher uma outra forma para o corpo, a garota seria uma árvore, ou talvez um brigadeiro. Nunca agrião. Gabriela acredita em felicidade.

Isabela
Ela viajou para muitos lugares no próprio corpo. Percorreu os caminhos do coração, nadou como um peixe pelo o humor e pingou no rio dos sonhos. Isabela deseja conhecer os outros: vai ser médica. Nunca rezou ao céu, pois nele só enxerga nuvens. Se pudesse mudar duas coisas no mundo, faria o brigadeiro menos doce e a noite mais escura. Isabela dormiu três dias seguidos quando lhe contaram que o amor tem um formato estranho: é um passarinho que voa para longe quando mais o chamamos para chão. Isabela acredita na tristeza.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Cooperifa

“Não! Ali não pode estacionar...é o ponto de ônibus”, alguém gritou de dentro do Bar do Zé Batidão, orientando o local onde os veículos visitantes deveriam ficar. “Você pode deixar o carro ali embaixo, assim fica mais fácil para quando vocês forem embora”, aconselhou. Ir embora? Não, não, impossível. Sair da Cooperifa é tão difícil quanto chegar. Ninguém vai embora de lá: talvez os corpos, sim, mas transformados, com certeza. O coração e a alma ficam naquelas mesas para sempre.

O Sarau Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia) acontece todas as quartas-feiras, no Jardim Guarujá, lá quase perto da lua, tantas vezes cortejada. Como diz o poema de Sérgio Vaz, “no cume do subidão do piraporinha, perto das nuvens e longe da superfície, terreno fértil para o plantio de poemas e poetas".

No Sarau da Cooperifa você vai encontrar: cinco grandes fileiras de mesas de plástico vermelho (e mais algumas mesinhas solitárias, para o caso de o poeta não ter amigos); garrafas de cerveja que causam hipotermia em mãos e gargantas desavisadas; escondidinho de carne seca, tão cheiroso que dá vontade de declará-lo amor eterno; dois banheiros; uma árvore conservada no meio do bar, que se tivesse voz, também faria poesia.

Mas no Sarau da Cooperifa encontra-se principalmente: poesia e poetas. Poetas negros, poetas brancos e amarelos, poetas de cabelos grandes, curtos, enrolados. Poetas de peruca. Poetas jovens e velhos. Alguns poetas são cozinheiros, outros limpam com versos os prédios da classe média. Há poetas motoristas e poetas motoboys. Poetas alunos, ou professores, poetas que cantam rap...Assim, de poeta em poeta, a Cooperifa transforma as dificuldade cotidianas da periferia em rimas de alegria. “Aqui todos são chamados de poetas”, diz Marcio Batista, que nas horas vagas é professor de educação física, mas tem a poesia como profissão.

“Só faltei ao Sarau três vezes: quando eu estava em um congresso, uma eu não consegui chegar a tempo e última foi quando meu filho quebrou o pé”, lembra Marcio, um dos mentores do grupo. “O Sérgio Vaz e eu andamos juntos desde moleque, ele me incentivou a começar a escrever. E hoje estou aqui, com nove livros publicados”.

Inspirada na Semana de Arte Moderna de 1922, o primeiro encontro da Cooperifa reuniu cerca de 150 pessoas, entre elas, artistas de diversas áreas, como a literatura, a música e o teatro. “No começo, era um monte de poetas na calçada sem ter o que fazer. Depois o pessoal começou a se apresentar, recitar seus poemas”, diz Marcio. Nove anos depois, são mais de 400 pessoas por encontro. O Sarau, aliás, não é o único evento da turma: há também o “Cinema na Laje”, o “Ajoelhaço” (quando os homens se ajoelham em perdão às mulheres) e o “Poesia no Ar”, ideia de Sérgio Vaz, que colocou poemas em bexigas e as soltou pela cidade.

Além de idealizador da Cooperifa, o poeta Sérgio Vaz, também conhecido como Colecionador de Pedras, é quase um puxador de samba. Vai ao palco, pega o microfone e incendeia o seu público para o espetáculo que vem a seguir. “Boa noite, povo lindo, povo inteligente! Na Cooperifa, o movimento cultural de periferia para periferia! Todo mundo aqui é bem-vindo: gente de todos os credos, cores e dores! É tudo nooossooooo!”

Às nove horas em ponto começam as apresentações, cuja única regra é: “silêncioooo”, o silêncio que todos escutam felizes. O vácuo só é invadido pelas vozes dos poetas, que recitam de diversas maneiras: alguns interpretam como atores de verdade, subindo em cadeiras e chamando o público a participar, outros leem com o swingado do rap ou do samba, tocado no cavaquinho e no coração.

Na Cooperifa, os assuntos fogem um do outro: em um momento é a violência ou a exclusão social sofrida pela periferia, no seguinte, o amor declarado pelo Seu Lourival, poeta de corpo, alma e peruca. Saudade, encontros, paixões e desencontros, morte, vida, tudo, tudo...todo o mundo cabe nas palavras de um poeta. “Eu não sabia, mas a poesia é que nos faz feliz”, canta Dengue, que pela primeira vez apresenta seus versos.

Ele tem razão. Às onze horas, quando as cortinas se fecham no sarau, é impossível deixar de ser feliz.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

A Luz nossa de cada dia

Dário levanta seus olhos azuis para a imensa Luz que o cerca. Não vê nada. Quis o destino, ou a vontade daquele que disse “faz-se luz”, que Dário Emiliano seria cego desde o nascimento. Já se passaram 20 anos desde então. Quando não está com a esposa, o rapaz invade o espaço com a ajuda da bengala. É ela quem diz onde ele está: “Um lugar enorme, com muitas pessoas e luzes, me parece um tanto perigoso”.

A destemida bengala acerta o alvo. Seu dono está no centro do saguão de entrada da mais importante estação de trem de São Paulo: Luz. Dário é apenas um entre as 280 mil pessoas que, segundo a CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), passam diariamente por essa gigantesca estrutura de ferro, pedra e cimento.

A estação, inaugurada em 1901, conta a história recente da metrópole paulista. No início do século passado, os trens saiam carregados de sacos café. Atualmente, eles transportam pessoas, além de toda a pressa da cidade que não para nem para observar a si própria. Dentro da estação são milhões de histórias e conflitos a serem descobertos. Suas luzes iluminam rostos de todos os tipos e formas, de diferentes classes sociais, sonhos e esperanças. A Luz é uma metonímia do Brasil.

Do lado de fora, as nuvens negras mancham o céu com as incertezas que só uma chuva pode causar em São Paulo. Dário não vê, mas sente a tempestade se aproximar. Ele aguarda a esposa aparecer. “Acho que vou ligar para ela”, diz, com a voz tímida.

As estagiárias
Quando alguém percebeu, o homem já havia passado pela catraca com dois carrinhos lotados de guloseimas. Doces, balas, chicletes, salgados...“Você só pode entrar com um por vez”, grita Camila Santos, sorrindo tanto que nem parece estagiária. “Só vou abastecer a loja ali e já saio”, retruca o homem. Camila pensa... “Não, não pode, você sabe disso”. Essa discussão se repete a 11 meses, desde que Camila começou a organizar o entra e sai da estação. “Nós ganhamos 460 reais para agüentar esse cara, não é, Ana?”

Ana Paula, também estagiária, não ouve a amiga: está com tanto sono que sonha sem tirar os pés do chão. “É, é...”, resmunga. Ana acordou às 5h30 da madrugada, tomou café, pegou o ônibus para a escola, estudou, não almoçou, veio correndo para a Luz e (ufa!) agora sente um perfume de homem. “Lá vem você com esses cheiros estranhos”, diz Camila. “Esses dias eu senti cheiro de caldo Knorr”, conta Ana.

Inseparáveis dentro da estação, as duas estagiárias decidiram percorrer trilhos diferentes no futuro. Não desejam trabalhar na CPTM para sempre. Enquanto dita quem pode passar pela catraca, Camila treina o seu sorriso aparelhado. Quer ser dentista. “Quando era pequena, eu fui ao consultório e achei tudo tão lindo”, lembra. Já Ana, séria, sentencia: “Vou ser psicóloga”.

“Ana, vamos almoçar, está na hora”, sugere Camila. “O que será que tem na marmita hoje?”, pergunta-se Ana, balançando os cabelos lisos. As garotas sobem a escada rolante aos pulos. Em seguida, atravessam uma das quatro plataformas da estação, rumo ao refeitório. Elas são observadas por Jesus, que a tudo contempla encostado em uma parede do outro lado da estação.

Seu Jesus
Jesus Fernandes, 54 anos, não carrega uma cruz, mas sim uma pá e uma vassoura. É faxineiro dos trens. Quando encosta uma minhoca de ferro, ele entra, recolhe uma sujeira ou outra e retorna muro de observação. Em média, o faxineiro limpa 35 trens por dia em oito horas de trabalho.

Seu Jesus, como é conhecido pelos outros faxineiros, só tem grandeza no nome, pois dos pés à cabeça não mede um metro e cinqüenta. O bigode e o cabelo – ralos – carregam os fios brancos da idade e do sofrimento. “Minha ex-esposa me trocou por vendedor de papelão”, conta. “Depois ela matou o cara com um chá envenenado, sou a única testemunha”.

Desde então, esse pequeno homem de Feira de Santana (BA) não tem lar fixo. “Prefiro não falar onde moro”. Para Jesus, todos os lugares são iguais. Até a Estação Luz? “Sim, aqui os pombos também despejam uma tonelada de coco em cima da gente”.

Há 19 anos limpando estações e trens, Jesus quase não ouve mais os desejos de suas duas filhas. Ele está quase surdo. “Ninguém percebe, mas o barulho dos trens me tirou quase 100% da audição”. Por isso ele observa o mundo acontecer, sempre encostado em sua parede de observação.

Passageiros
Em uma enorme sacola branca, Amaro Francisco Lima leva um casamento. Não o dele, mas o do afilhado Edmar, que no último sábado trocou alianças com a jovem Bruna. Coube a Amaro devolver o vestido e o terno dos noivos à loja “Center Noivas”, localizada em uma das entradas da Luz. Por isso, esse pernambucano espera passar a chuva que se anuncia grande.

“Vim para São Paulo com 19 anos”, lembra Amaro. Hoje com 43, ele aprendeu que a metrópole, às vezes, promete sonhos, mas entrega sofrimento. “Trabalhava como segurança de um posto de gasolina no Jabaquara. Um dia, uns ladrões entraram e atiraram três vezes contra mim: um na barriga, um no intestino e o último no pulmão”. Amaro sobreviveu porque Deus lhe deu a vida, segundo ele. “No mesmo dia, um outro funcionário do posto levou um tiro no pulso e morreu”.

Amaro, como muitos nordestinos, trouxe não só o sotaque e a força de trabalho para o maior centro comercial do País. Na mala, esses milhares de retirantes trazem a esperança de vencer. Os trens, que a todo minuto chegam e saem da Luz, estão cheios de pessoas como Amaro. Eles vieram da “periferia” do Brasil para o subúrbio de São Paulo. Melhoraram de vida? Talvez sim, mas para isso sentem diariamente os sofrimentos urbanos. Levam tiros para colocar gasolina nos carros da classe média. Se empurram e se espremem nos trens porque têm de limpar os prédios onde são feitos os negócios milionários. Eles entram nos trens porque necessitam comer, criar os filhos, viver melhor...precisam vencer.

***

Carlos Alves não é feito de saudades, mas sim de lembranças. Em uma câmera fotográfica, ele guarda a Luz para mostrar à eternidade. Anda pela estação e registra seus melhores ângulos, seus cantinhos centenários, seu aço trazido de navio. Carlos, turista dentro da própria cidade, conhece a história da São Paulo Railway, empresa detentora das linhas férreas do Estado por longos e ricos anos. Época do reinado do café. O ouro verde era tão poderoso que foi capaz de colocar no mapa do Brasil uma cidade até então colonial.

Com 108 anos de idade, a Luz representa um resumo recente da história da maior cidade do País. Depois da abundância do café, que criou prédios e riqueza, a estação viu crescer ao seu redor uma metrópole sem planejamento algum. Os 240 mil habitantes, em 1900, se transformaram em 12 milhões, em 2009.

O ano de 1946 marcou a transformação da cidade. O fogo tomou conta da estação e levou com ele os trens carregados de café. Depois do famoso incêndio, as minhocas de ferro adquiram a função de levar ao centro a multidão vinda dos subúrbios. Em 2000, a obsoleta estação da Luz ganhou uma grande reforma estrutural.

“Antes da reforma, as plataformas eram de madeira”, recorda Carlos. “Agora a Luz está linda, mas não sinto falta daqui nem de São Paulo”. Carlos fez o caminho contrário dos milhares de migrantes que chegam diariamente à cidade. Colocou na mala as roupas e os sonhos e foi morar em Lima, no Peru. Está lá há 10 anos e nem pensa no trem de retorno. Encontrou mais oportunidades lá do que em sua cidade natal. “Em Lima, dei muita sorte. Tenho uma agência de turismo para sul-americanos que desejam conhecer o nosso continente...Aliás, você já foi nos Andes?”, pergunta.

O paulistano voltou a cidade para mostrar ao sócio peruano Jaime Queiroz a beleza à européia da estação, pois, afinal, a Luz é inglesa até nos parafusos. O peruano repara: “Isso tudo é muito lindo. Na Luz é possível encontrar vários tipos de expressões humanas: pessoas alegres, tristes, preocupadas...isso não existe em Lima”. Aportuguesando o espanhol, Jaime compara: “No Peru, as mulheres também não são tão bonitas”.

Aaah, agora uma saudade de Carlos é finalmente revelada. “É, lembrei...sinto falta de duas coisas de São Paulo: as mulheres e a pizza”. Mas qual das duas preciosidades traz mais saudosismo, Carlos? “Huumm, deixa-me pensar... A pizza!”

O piano
“Amigo, toca mais uma pra gente”, grita alguém no saguão de entrada. Dário Emiliano, que começava a discar o número da esposa, para de repente. “Opa”, responde. Dário não enxerga com os olhos, mas suas mãos sabem exatamente o lugar das teclas de um piano. Ele caminha até o instrumento, se senta no banquinho e começa a exibir os seus dotes musicais.

Colocado lá em 2008, como parte da programação da Mostra de Artes do SESC, o piano da Luz tornou-se símbolo da democracia. Pessoas de todos os tipos, gêneros, cores e dores, aparecem para ouvir ou mesmo tocar. Dário é um deles. “Toco desde os 10 anos, aprendi sozinho”, conta.

O piano da Luz tem em suas teclas brancas algumas marcas negras, pois as mãos de João Carlos, o Joãozinho da Gaita, não são lavadas há alguns dias. O pianista (ou gaitista, como prefere) dorme logo ali, atrás de uma banca de jornal da Cracolândia. Ele acorda cedo e logo vem tocar suas músicas. “Sou artista de rua, tenho sangue cigano, gosto de tocar Roberto Carlos e vim atrás da minha esposa, que fugiu para São Paulo”, diz, sorrindo. Joãozinho é usuário de craque, mas prefere não tocar no assunto.

Já Rogério Santos, que apenas observa os outros tocar, não esconde. “Uso craque desde 1996”. Rogério também vive na Cracolândia, mas não se considera morador de rua: prefere ser chamado de andarilho. “Respiro a Luz, conheço tudo desse lugar, as prostitutas, os noias e principalmente a arquitetura, que me lembra a Inglaterra”, conta. Do país europeu, ele também conhece a língua. Aliás, não só fala inglês como também espanhol. Rogério só não gosta de poesia. “Não sei, acho os poemas muito fantasiosos, gosto mais da Clarice Lispector”, revela.

Rogério pede dinheiro a quem passa. Tem mais moedas nas mãos que dentes na boca. “Sou pedinte”, define. Suas roupas são sujas e seus os olhos revelam dureza. É difícil olhar para ele. “A única esperança que tenho é a morte”, diz. Em seguida, volta a sua atenção para o piano, nas mãos sujas de Joãozinho da Gaita novamente.

Entre uma nota e outra, o artista de rua canta: “Eu sou apenas um pedaço de alguééém...”. De repente, um trovão cala a todos. Vai chover daqui a pouco...

Preferencial
Camila e Ana Paula retornam do almoço às 16 horas. “Agora, vamos cuidar do preferencial, lá tudo é muito polêmico”, amedronta Camila. Nas estações mais movimentadas, como a Luz e o Brás, a CPTM reserva, no horário de pico, o primeiro vagão aos idosos, às crianças, às grávidas, às pessoas com deficiência ou com alguma doença grave. As estagiárias são as responsáveis por determinar quem se encaixa nessas condições. Elas são ofendidas, ouvem reclamações, gritos de passageiros inconformados, propostas de suborno, entre outras coisas. “Aqui, precisamos de duas mães: uma nossa e outra apenas pra ser xingada”, brinca Ana.

O problema surge quando o primeiro vagão sai vazio, enquanto os outros vão lotados de pessoas espremidas. “Uma criança de três anos vai lá sentada e nós, que trabalhamos o dia inteiro, vamos em pé”, reclama uma passageira. Outro homem, com a mão na boca, pergunta: “Dor de dente passa para o preferencial também?” Nããããããooo!

A plataforma enche em poucos minutos e o fluxo de trens não é capaz de carregar essa demanda. Cansados do trabalho, o que todos não desejam é encarar um vagão lotado a essa altura do dia. Por isso, muita gente tenta embarcar no conforto do preferencial mesmo sem estar dentro das especificações. “Você tem 59 anos, não pode passar”, Ana barra uma senhora. “Quando você tiver a minha idade, vai ver o que é bom, menina”, rebate a passageira, nervosa. Com a paciência dos psicólogos, Ana apenas sorri.

“Por favor, você pode me dar o laudo médico”, pede Ana a um homem com cara de doente. “Espera aí”. O rapaz, já meio amarelo, tira o papel da carteira. “Donizete? Mas isso é nome de mulher”, retruca a estagiária. “Como assim, moça? Você está me estranhando? Meu nome é esse mesmo!”. Ana olha para o homem, desconfiada. “Aaaaah, me desculpe, achei que fosse nome de mulher”. O rapaz doente passa para o preferencial, vai confortável até seu destino final. Todos riem.

Mais um dia na Luz
A Estação da Luz é um retrato da maior da cidade do Brasil. Talvez até do próprio País. É enorme e traz rostos e culturas diferentes, como disse o peruano Jaime. Sonhos e esperança também não lhe faltam, pois a Luz foi concebida justamente para demonstrar o desejo de uma vila que se via grande. Pela Estação, passam milhares de pessoas todos os dias, entre funcionários – são 150 no total – e gente que apenas passa, porque, afinal, são passageiros.

Muitos têm pressa: rumam ao trabalho ou a um chefe que não tolera atrasos. Outros carregam casamentos em sacolas, como o nordestino Amaro que, ao toque do celular, decide ir embora. Maridos traídos não carregam uma cruz, pois o peso da vassoura e da pá é ainda maior: então, observam o mundo, como o Seu Jesus. Aqueles que não veem com os olhos tem mãos feitas para a música: lá vai o pianista Dário Emiliano entrar no trem com a esposa grudada aos braços...

No saguão de entrada, Joãozinho da Gaita ganha R$ 2 de uma mulher que admira sua música. O rapaz, esbanjando felicidade, corre pelo espaço mostrando a nota a todos que encontra pela frente. Rogério Santos se vira: durante um longo período não tira os olhos do dinheiro de Joãozinho. Seu vício de craque fala mais alto que qualquer personagem de Clarice Lispector.

Dentro da Estação, Camila, a estagiária sorridente, passa correndo por uma plataforma. O horário de pico acabou e, finalmente, ela vai para casa. Ana também, mas antes ouve um poema de um passageiro, que se diz apaixonado por ela. “Você gosta de poesia?”, pergunta Ana. “Não”, ele responde. “Só gosto de você”.

A chuva começa forte. Um céu inteiro desaba no teto arredondado da Estação, causando um barulho que espanta até os pombos lá em cima. Como um trem, a energia elétrica vai embora. A escuridão toma conta de tudo, mas a Luz não se apaga nunca.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Amanhã, sem falta

Num mundo mais ou menos justo, a chuva viria para refrescar nossas convicções e não traria incertezas e enchentes em seus pingos de desesperança, como anda acontecendo. Porém, aqui, nesta terra de prédios inalcançáveis e vendedores de maçãs do não-amor, eu continuo tão tímido quanto uma árvore sem folhas. Talvez seja mais fácil uma girafa recitar um poema modernista que eu assumir o romantismo grudado nos meus cabelos, olhos e letras. Não sei, não sei, tudo parece tão simples para as pessoas, tão fácil...Mas tudo bem, amanhã, sem falta, vou subir numa mesa de bar para gritar a todos os bêbados que amam: “Pessoal, eu a amo mais que o número de anos da Hebe”.