sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Mariana cheia de tudo

A Mariana não gosta de: palavras cruzadas, arte presunçosa, textura do bolo de chocolate, shows de blues, roupas pretas, aquecedores elétricos, uva verde, música alta, palestras sobre semiótica, peças de teatro para idosos, cebola na esfiha de carne, rock pesado, andar rápido, calças apertadas, tênis caros, fones de ouvido, aliança de compromisso, trabalhar no Sesc, livros em espanhol, filmes argentinos, homens que rebolam demais, desculpas esfarrapadas, freses sem sentido, dormir às oito da noite, televisão aos domingos e nuvens de verdade.


A Mariana realmente gosta de: carne seca, música instrumental, tocar piano, salada de brócolis com acelga, dança nas noites de sábado, palestras sobre teatro, filmes italianos, filmes espanhóis, mochilas, filmes brasileiros, pirulito depois do almoço, dormir à tarde, namorar no banquinho da praça, xingar os chefes, estudar partituras, conversar sobre a eficiência dos elevadores, chinelos, cheiro de chuva, vestidos floridos, jogar futebol, cantar Nara Leão, imaginar besteiras, melancia com arroz, me encorajar a escrever mais.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Musa

Vejo-te em texto, em sílabas ao vento, em doces palavras, em tortas rimas. Imagino-te um poema, uma carta de amor, uma letra de música, um conto peregrino, um romance passageiro em limpas páginas. Não te desejo: só te quero em meu teclado, em minha tela, em pensamento, em devaneios sem sentido. Não te anseio croncreta, só projeto, construção, impossibilidade. Não te espero verdadeira, mas sim inverdade absoluta, um sonho, uma utopia, um não, um talvez, um final mal entendido.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A sonolência sem fim

Tenho certeza que se algum desses cientistas me examinassem um dia descobririam o segredo da minha vida no primeiro olhar mais apurado:

– O seu sono não é deste mundo, Leandro. – me diria um deles.

Eu, meio cabisbaixo, teria que concordar: sim, problemas com o dormir realmente fazem parte da minha vida. Não é nada de apnéia, insônia, sonambulismo, essas coisas meio classe média, saca? A minha dificuldade é de peão mesmo! É ter sono demais! Mais que demais, é quase insuportável.

Chego a pensar que eu, sujeito menor, posso alcançar a maior glória do universo: ser o primeiro homem a morrer de sono. Isso mesmo: vou chegar ao limite da sonolência e, ao invés de dormir por ali mesmo, meu espírito abandonará o corpo vil para ir morar ao lado de Deus, quem sabe, lá atrás das montanhas.

A coisa é tão séria, meu caro, que os métodos anti-sono não têm mais efeitos sobre mim. Café, remédios, energéticos, ervas indígenas, entre outros, não funcionam. Pelo contrário, tenho a impressão que eles pioram a situação. Deve ser psicológico, só pode.

Enquanto escrevo este texto, imagino por alguns segundos a minha cama, ali, tão linda, tão macia, tão perfeita. Ela está me esperando, me chamando; venha, Leandro, durma, durma, descanse este coração infeliz...Não, agora não posso, tenho que terminar a crônica.

Enfim, dormir dez, doze, treze horas também não ajuda. Quanto mais eu durmo, mais sono eu tenho. E isso não é privilégio meu; já coletei depoimentos de pessoas que passam por esse empecilho também. Talvez seja um mal da sociedade contemporânea, da modernidade, dos meios de comunicação, da semiótica aplicada, do fim do comunismo, essas coisas.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

O misterioso bichinho da lâmpada

Exatamente neste minuto em que escrevo, na terça-feira à noite, chego a seguinte constatação bombástica: a população de “bichinhos da lâmpada” aumentou consideravelmente nos últimos anos.

Eu os chamo assim, “bichinhos da lâmpada”, na falta de um nome melhor ou científico, pois, como você deve saber, não sou biólogo e nem pretendo ser tão logo, já que não possuo nenhum talento para o ramo – e também pelo fato do terrível medo que sinto de um certo animal chamado “lacraia”.

Mas voltando aos adoradores da lâmpada, eu não os entendo: é só fazer um calorzinho em São Paulo e eles aparecem aos montes. Estou olhando para uma lâmpada neste instante e posso ver centenas voando alegremente, um vôo meio kamikaze, meio esquadrilha da fumaça, saca?

Outra questão me aflige: por que eles só aparecem em dias quentes? No frio, ninguém os vê. Talvez por estarem escondidos, sei lá, se reproduzindo prazerosamente para a guerra santa que travam contra a raça humana a cada triste verão. Na verdade, guerra mesmo não tem, já que eles ficam lá em cima sem atrapalhar ninguém.

E não é que eu tenha algo contra eles, pelo contrário: simpatizo! O que me inveja profundamente é aquele vôo suicida. Fico pensando como eles não se chocam, não batem de cabeça com um companheiro de lâmpada, não morrem por escolherem um caminho errado, uma rota mal planejada.

E nas asas, já reparou? Não são normais: elas se movem de forma diferente dos outros insetos voadores. Aliás, o bichinho da lâmpada faz algum som quando está no ar? Eu nunca ouvi. Espero que não seja igual ao do temível pernilongo, meu algoz em dias calorentos.

O bichinho da lâmpada é tão misterioso que nem um final digno eu tenho para o texto sobre ele. O que resta mesmo observá-lo cortar o ar com as suas asinhas de helicóptero e sonhar meu dia melhor amanhã, meio kamikaze, meio esquadrilha da fumaça, saca?

domingo, 12 de outubro de 2008

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Do livro e outros demônios

Sempre tive curiosidade para saber o que as pessoas estão lendo. Faço de tudo para descobrir: entorto o pescoço, olho de lado, disfarço, tento de novo, procuro outra vez, enfim, desejo furiosamente conhecer qual é o livro que o rapaz moreno na minha frente está segurando.

– Será um Gabriel García Márquez? – eu penso, esperançoso. Talvez. Ele tem jeito que curte o Gabo, sei lá: está vestindo uma camisa vermelha, e isso é um forte indício. Cem anos de solidão ou Crônica de uma morte anunciada?

E se for um livro novo, um lançamento? E agora, cara? Eu preciso saber qual é! O rapaz moreno conhece um livro do García Márquez que nem em sonho eu supunha existir. O que é isso? Lançam coisas novas e nem avisam a parte pobre da população?!

Espera aí, talvez não seja novo. Talvez seja um daqueles raros, sabe? Que você não encontra nem nos sebos da Rua Augusta. É, realmente... se for assim tudo bem, não ligo; o cara conseguiu uma proeza: encontrou uma raridade e agora está exibindo a nós, meros mortais que andam de metrô. Parabéns!

Eu quero pelo menos saber o nome do livro para comprá-lo com as moedinhas do meu cofre, mas o cara moreno não me mostra. Ele que é feliz: lê obras raras do Gabriel García Márquez, deve ter uma namorada bonita, um belo emprego, almoça em restaurantes legais, toma banho quentinho, enfim, uma vida normal. Enquanto eu, sujeito menor, tento de todas as formas descobrir o título do tal livro. Vida injusta.

A minha estação está chegando. O metrô vai parar e, infelizmente, não descobrirei qual é o título da obra rara. Tudo bem, meu amigo, a vida é assim. Talvez nem seja Gabriel García Márquez mesmo. O cara moreno deve ter preocupações maiores. Talvez ele esteja lendo algo da advocacia, da medicina, da cura do câncer, coisa importante, saca?

Agora vou dormir tranqüilo: não lançaram nenhuma obra nova do Gabo, nem encontraram uma raridade. Ah, que felicidade. Posso até continuar meus textos idiotas.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Quem é você, Leandro?

Enquanto a cidade vira um lixão de santinhos, nós votamos em Sergio Malandro, Dinei da Fiel e Netinho de Paula. Que merda, cara; realmente me senti constrangido quando saí de casa para votar.

Que porcaria era aquela? Papel e lama, tudo misturado! Eu vou votar num cara que suja a minha cidade? Que polui nossos ouvidos com jingles em altos volumes? Quantas toneladas de papel? Com quantas árvores se faz uma eleição?

Isso tudo me lembrou a cena do filme “O Jardineiro Fiel”, quando os africanos matam o cara sem nem saber o motivo. Simplesmente matam, porque os mandam matar. Era só mais um. Assim como entregamos santinhos como se fosse só mais um. É apenas algumas toneladas de lixo na rua.

O que nós fazemos? Nada! Continuamos e continuaremos achando que está tudo bem. O emprego aumentou, a renda também, arranjamos um trabalho de 700 reais e compramos a porcaria do tênis da moda! Jogamos tudo no chão e bebemos a última cerveja para mentirmos a nós mesmos. Que raiva! Nada funciona nessa merda! É tudo pela metade.

Somos um país de motoboys, operadores de telemarketing e entregadores de santinhos por 30 reais ao dia. Somos jovens incompletos, vivemos o passado de nossos pais. É para isso que nascemos? Que geração é a nossa, cara? Seremos lembrados pelo quê?

Cansei dos anos 60, não agüento mais os 80. Porcaria de ditadura, Diretas Já, passeatas, guerrilha, caras pintadas, tortura, Collor e Médice! Nada disso funciona mais comigo! E nós, meu amigo, e nós? O que fizemos? Pelo quê lutamos? Mudamos o quê? Que angústia é essa?

sábado, 4 de outubro de 2008

A equação da infinita saudade

Eu tive certeza que me tornei um nostálgico quando, na sexta-feira, experimentei a mostarda de uma dessas lanchonetes da Zona Sul.

– Que bela mostarda vocês têm aqui, hein?! – me deu vontade de dizer, ironizando.

Antigamente, a mostarda era saborosa, azedinha. Hoje, não: ela está mais doce que o brigadeiro feito pela minha mãe aos domingos. Não só a mostarda mudou, o ketchup também, a vida.

Eu sei que com dezenove anos é difícil sentir saudade de alguma coisa. Muitos dirão que é a melhor fase e tal, e eu concordo. Mas sinto falta, sim! Ninguém pode me tirar esse direito!Afinal estamos num país democrático. Ou não?

As coisas mudaram, meu amigo. O mundo não tem mais a graça de alguns anos atrás. As escadas mudaram de lugar, não batemos mais figurinhas, nada de futebol na rua sem saída! E as traves de madeira, cadê elas?

O fanatismo pelo maior time do mundo ainda existe? Não, com certeza. Bom o tempo em que a preocupação era perder todos os tazos na esquina. Esconde-esconde na esquina. Ah, lá vem o Seu Pascoal trancar o portão. Onde se esconder agora, meu amigo? Se for na Dona Ana, ela solta os cachorros. E os meus cachorros? A Princesa, a Grampola, o Pequenino?

Cem gramas de pururuca, por favor! Fogueira em dias de frio. Aliás, ainda existe frio em São Paulo? Chegar molhado de chuva em casa. O que é isso, meu filho, por que tão ensopado? Sopa à noite, hambúrguer à tarde, refrigerante de manhã. E amanhã, futebol ou matemática, professora?

E lá vem o Leandro pela esquerda, passa pela equação, dribla o gráfico, deixa no solo a divisão, mas perde a bola para o incógnito amor ao quadrado da Bruna, da Talita, da Jéssica... Que pena! Perdeu todo aquele jeito sem vergonha. Mas que vergonha, nem brincar você sabe mais, meu Deus.

Se me resta mesmo Deus. Adeus, tempo nenhum. Adeus, passado. Adeus, leitor. Ainda há algum?