domingo, 14 de dezembro de 2008

O bêbado e a perna esquerda

A enfermeira passou por ele* com uma cara de piedade no rosto. Era a mesma expressão de pena e compaixão que ela lançou a todos os enfermos do Hospital São Marcos, em Ferraz de Vasconcelos. Era o fim para ele, pelo menos para uma parte dele. A última cena de um espetáculo que ninguém viu. E se houve espectadores, eles se retiraram antes do segundo ato.

Ninguém foi visitá-lo no hospital: nenhum dos seis filhos que teve, nenhuma das duas ex-esposas, dos muitos parentes, dos poucos amigos. Ninguém. Todos se afastaram quando perceberam que as farras não teriam fim e as bebedeiras continuariam eternamente. “Você acha que alguém gosta de bêbados?”, questiona. “Bêbados são inconvenientes, cheiram mal, falam verdades às pessoas. E esse povo não gosta dessas coisas, principalmente das verdades”, filosofa.

Diagnosticado com trombose na perna esquerda, ele deveria amputá-la. “Eu não sei o que aconteceu, me disseram ‘você vai ter de tirar a perna’, eu disse ‘tudo bem, que dia?’”. Quatro semanas depois, lá estava ele deitado na desconfortável maca, esperando a operação.

Os médicos entraram na sala, diferentes que são de suas ajudantes. “Médico não tem sentimento”, diz. “Eles me olham como um idiota que resolveu ficar doente por falta do que fazer”. Mais um doente, mais uma operação, mais tempo perdido. “Às vezes eu tenho a impressão que eles nos liberam do hospital só para morrermos em casa, sabe?”, completa.

Os dois homens de branco se aproximaram, com os instrumentos nas mãos. “Agora tudo está perdido”, pensou na hora. Era a última vez que ele veria sua perna esquerda. Dali a poucos minutos, seria alcançado pelo sono devastador da anestesia. Em poucas horas, sua perna não estaria mais lá, ela o deixaria para sempre: um pedaço morto separando-se de um corpo ainda vivo. “Foi o preço de uma vida do caralho”, diz.

Quando acordou, ele ainda a sentiu. Eles desistiram? Se deram conta da importância do membro para o homem? “Eu senti como se minha perna ainda estivesse lá”, disse. Mas não estava. Fora embora para algum lugar onde se guardam as pernas amputadas. “Imagino lugares onde eles escondem essas coisas, pernas, braços, mãos, pés”. O Campo dos Desmembrados? “É, talvez, mas gosto mais de A Terra dos Membros Perdidos”.

Não deve ser fácil perder uma parte do corpo em uma cidade com as limitações físicas de São Paulo, que em poucos lugares pode ser chamada de acessível. “É complicado realmente, ainda mais quando você joga futebol”, explica. “Agora vou ter que virar goleiro”. E vai parar de beber? “Eu não, pra quê? Já perdi uma perna, estou ficando velho e a bebida é a única coisa que me deixa feliz”.



* resolvemos ocultar o nome para evitar problemas lá na rua.

4 comentários:

Leandro disse...

Alguém perguntará: "é verdade essa história?"
Eu responderei: "o que você acha?"


Beijo a todos.

Jefferson Sato disse...

Toda história é verdadeira para quem nela acredita.

Jefferson Sato disse...

Nessa, eu quis acreditar

Tatiane disse...

Eu acho que é verdadeira.
E acho que também sei sobre quem é a história.