terça-feira, 13 de outubro de 2009

A Luz nossa de cada dia

Dário levanta seus olhos azuis para a imensa Luz que o cerca. Não vê nada. Quis o destino, ou a vontade daquele que disse “faz-se luz”, que Dário Emiliano seria cego desde o nascimento. Já se passaram 20 anos desde então. Quando não está com a esposa, o rapaz invade o espaço com a ajuda da bengala. É ela quem diz onde ele está: “Um lugar enorme, com muitas pessoas e luzes, me parece um tanto perigoso”.

A destemida bengala acerta o alvo. Seu dono está no centro do saguão de entrada da mais importante estação de trem de São Paulo: Luz. Dário é apenas um entre as 280 mil pessoas que, segundo a CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), passam diariamente por essa gigantesca estrutura de ferro, pedra e cimento.

A estação, inaugurada em 1901, conta a história recente da metrópole paulista. No início do século passado, os trens saiam carregados de sacos café. Atualmente, eles transportam pessoas, além de toda a pressa da cidade que não para nem para observar a si própria. Dentro da estação são milhões de histórias e conflitos a serem descobertos. Suas luzes iluminam rostos de todos os tipos e formas, de diferentes classes sociais, sonhos e esperanças. A Luz é uma metonímia do Brasil.

Do lado de fora, as nuvens negras mancham o céu com as incertezas que só uma chuva pode causar em São Paulo. Dário não vê, mas sente a tempestade se aproximar. Ele aguarda a esposa aparecer. “Acho que vou ligar para ela”, diz, com a voz tímida.

As estagiárias
Quando alguém percebeu, o homem já havia passado pela catraca com dois carrinhos lotados de guloseimas. Doces, balas, chicletes, salgados...“Você só pode entrar com um por vez”, grita Camila Santos, sorrindo tanto que nem parece estagiária. “Só vou abastecer a loja ali e já saio”, retruca o homem. Camila pensa... “Não, não pode, você sabe disso”. Essa discussão se repete a 11 meses, desde que Camila começou a organizar o entra e sai da estação. “Nós ganhamos 460 reais para agüentar esse cara, não é, Ana?”

Ana Paula, também estagiária, não ouve a amiga: está com tanto sono que sonha sem tirar os pés do chão. “É, é...”, resmunga. Ana acordou às 5h30 da madrugada, tomou café, pegou o ônibus para a escola, estudou, não almoçou, veio correndo para a Luz e (ufa!) agora sente um perfume de homem. “Lá vem você com esses cheiros estranhos”, diz Camila. “Esses dias eu senti cheiro de caldo Knorr”, conta Ana.

Inseparáveis dentro da estação, as duas estagiárias decidiram percorrer trilhos diferentes no futuro. Não desejam trabalhar na CPTM para sempre. Enquanto dita quem pode passar pela catraca, Camila treina o seu sorriso aparelhado. Quer ser dentista. “Quando era pequena, eu fui ao consultório e achei tudo tão lindo”, lembra. Já Ana, séria, sentencia: “Vou ser psicóloga”.

“Ana, vamos almoçar, está na hora”, sugere Camila. “O que será que tem na marmita hoje?”, pergunta-se Ana, balançando os cabelos lisos. As garotas sobem a escada rolante aos pulos. Em seguida, atravessam uma das quatro plataformas da estação, rumo ao refeitório. Elas são observadas por Jesus, que a tudo contempla encostado em uma parede do outro lado da estação.

Seu Jesus
Jesus Fernandes, 54 anos, não carrega uma cruz, mas sim uma pá e uma vassoura. É faxineiro dos trens. Quando encosta uma minhoca de ferro, ele entra, recolhe uma sujeira ou outra e retorna muro de observação. Em média, o faxineiro limpa 35 trens por dia em oito horas de trabalho.

Seu Jesus, como é conhecido pelos outros faxineiros, só tem grandeza no nome, pois dos pés à cabeça não mede um metro e cinqüenta. O bigode e o cabelo – ralos – carregam os fios brancos da idade e do sofrimento. “Minha ex-esposa me trocou por vendedor de papelão”, conta. “Depois ela matou o cara com um chá envenenado, sou a única testemunha”.

Desde então, esse pequeno homem de Feira de Santana (BA) não tem lar fixo. “Prefiro não falar onde moro”. Para Jesus, todos os lugares são iguais. Até a Estação Luz? “Sim, aqui os pombos também despejam uma tonelada de coco em cima da gente”.

Há 19 anos limpando estações e trens, Jesus quase não ouve mais os desejos de suas duas filhas. Ele está quase surdo. “Ninguém percebe, mas o barulho dos trens me tirou quase 100% da audição”. Por isso ele observa o mundo acontecer, sempre encostado em sua parede de observação.

Passageiros
Em uma enorme sacola branca, Amaro Francisco Lima leva um casamento. Não o dele, mas o do afilhado Edmar, que no último sábado trocou alianças com a jovem Bruna. Coube a Amaro devolver o vestido e o terno dos noivos à loja “Center Noivas”, localizada em uma das entradas da Luz. Por isso, esse pernambucano espera passar a chuva que se anuncia grande.

“Vim para São Paulo com 19 anos”, lembra Amaro. Hoje com 43, ele aprendeu que a metrópole, às vezes, promete sonhos, mas entrega sofrimento. “Trabalhava como segurança de um posto de gasolina no Jabaquara. Um dia, uns ladrões entraram e atiraram três vezes contra mim: um na barriga, um no intestino e o último no pulmão”. Amaro sobreviveu porque Deus lhe deu a vida, segundo ele. “No mesmo dia, um outro funcionário do posto levou um tiro no pulso e morreu”.

Amaro, como muitos nordestinos, trouxe não só o sotaque e a força de trabalho para o maior centro comercial do País. Na mala, esses milhares de retirantes trazem a esperança de vencer. Os trens, que a todo minuto chegam e saem da Luz, estão cheios de pessoas como Amaro. Eles vieram da “periferia” do Brasil para o subúrbio de São Paulo. Melhoraram de vida? Talvez sim, mas para isso sentem diariamente os sofrimentos urbanos. Levam tiros para colocar gasolina nos carros da classe média. Se empurram e se espremem nos trens porque têm de limpar os prédios onde são feitos os negócios milionários. Eles entram nos trens porque necessitam comer, criar os filhos, viver melhor...precisam vencer.

***

Carlos Alves não é feito de saudades, mas sim de lembranças. Em uma câmera fotográfica, ele guarda a Luz para mostrar à eternidade. Anda pela estação e registra seus melhores ângulos, seus cantinhos centenários, seu aço trazido de navio. Carlos, turista dentro da própria cidade, conhece a história da São Paulo Railway, empresa detentora das linhas férreas do Estado por longos e ricos anos. Época do reinado do café. O ouro verde era tão poderoso que foi capaz de colocar no mapa do Brasil uma cidade até então colonial.

Com 108 anos de idade, a Luz representa um resumo recente da história da maior cidade do País. Depois da abundância do café, que criou prédios e riqueza, a estação viu crescer ao seu redor uma metrópole sem planejamento algum. Os 240 mil habitantes, em 1900, se transformaram em 12 milhões, em 2009.

O ano de 1946 marcou a transformação da cidade. O fogo tomou conta da estação e levou com ele os trens carregados de café. Depois do famoso incêndio, as minhocas de ferro adquiram a função de levar ao centro a multidão vinda dos subúrbios. Em 2000, a obsoleta estação da Luz ganhou uma grande reforma estrutural.

“Antes da reforma, as plataformas eram de madeira”, recorda Carlos. “Agora a Luz está linda, mas não sinto falta daqui nem de São Paulo”. Carlos fez o caminho contrário dos milhares de migrantes que chegam diariamente à cidade. Colocou na mala as roupas e os sonhos e foi morar em Lima, no Peru. Está lá há 10 anos e nem pensa no trem de retorno. Encontrou mais oportunidades lá do que em sua cidade natal. “Em Lima, dei muita sorte. Tenho uma agência de turismo para sul-americanos que desejam conhecer o nosso continente...Aliás, você já foi nos Andes?”, pergunta.

O paulistano voltou a cidade para mostrar ao sócio peruano Jaime Queiroz a beleza à européia da estação, pois, afinal, a Luz é inglesa até nos parafusos. O peruano repara: “Isso tudo é muito lindo. Na Luz é possível encontrar vários tipos de expressões humanas: pessoas alegres, tristes, preocupadas...isso não existe em Lima”. Aportuguesando o espanhol, Jaime compara: “No Peru, as mulheres também não são tão bonitas”.

Aaah, agora uma saudade de Carlos é finalmente revelada. “É, lembrei...sinto falta de duas coisas de São Paulo: as mulheres e a pizza”. Mas qual das duas preciosidades traz mais saudosismo, Carlos? “Huumm, deixa-me pensar... A pizza!”

O piano
“Amigo, toca mais uma pra gente”, grita alguém no saguão de entrada. Dário Emiliano, que começava a discar o número da esposa, para de repente. “Opa”, responde. Dário não enxerga com os olhos, mas suas mãos sabem exatamente o lugar das teclas de um piano. Ele caminha até o instrumento, se senta no banquinho e começa a exibir os seus dotes musicais.

Colocado lá em 2008, como parte da programação da Mostra de Artes do SESC, o piano da Luz tornou-se símbolo da democracia. Pessoas de todos os tipos, gêneros, cores e dores, aparecem para ouvir ou mesmo tocar. Dário é um deles. “Toco desde os 10 anos, aprendi sozinho”, conta.

O piano da Luz tem em suas teclas brancas algumas marcas negras, pois as mãos de João Carlos, o Joãozinho da Gaita, não são lavadas há alguns dias. O pianista (ou gaitista, como prefere) dorme logo ali, atrás de uma banca de jornal da Cracolândia. Ele acorda cedo e logo vem tocar suas músicas. “Sou artista de rua, tenho sangue cigano, gosto de tocar Roberto Carlos e vim atrás da minha esposa, que fugiu para São Paulo”, diz, sorrindo. Joãozinho é usuário de craque, mas prefere não tocar no assunto.

Já Rogério Santos, que apenas observa os outros tocar, não esconde. “Uso craque desde 1996”. Rogério também vive na Cracolândia, mas não se considera morador de rua: prefere ser chamado de andarilho. “Respiro a Luz, conheço tudo desse lugar, as prostitutas, os noias e principalmente a arquitetura, que me lembra a Inglaterra”, conta. Do país europeu, ele também conhece a língua. Aliás, não só fala inglês como também espanhol. Rogério só não gosta de poesia. “Não sei, acho os poemas muito fantasiosos, gosto mais da Clarice Lispector”, revela.

Rogério pede dinheiro a quem passa. Tem mais moedas nas mãos que dentes na boca. “Sou pedinte”, define. Suas roupas são sujas e seus os olhos revelam dureza. É difícil olhar para ele. “A única esperança que tenho é a morte”, diz. Em seguida, volta a sua atenção para o piano, nas mãos sujas de Joãozinho da Gaita novamente.

Entre uma nota e outra, o artista de rua canta: “Eu sou apenas um pedaço de alguééém...”. De repente, um trovão cala a todos. Vai chover daqui a pouco...

Preferencial
Camila e Ana Paula retornam do almoço às 16 horas. “Agora, vamos cuidar do preferencial, lá tudo é muito polêmico”, amedronta Camila. Nas estações mais movimentadas, como a Luz e o Brás, a CPTM reserva, no horário de pico, o primeiro vagão aos idosos, às crianças, às grávidas, às pessoas com deficiência ou com alguma doença grave. As estagiárias são as responsáveis por determinar quem se encaixa nessas condições. Elas são ofendidas, ouvem reclamações, gritos de passageiros inconformados, propostas de suborno, entre outras coisas. “Aqui, precisamos de duas mães: uma nossa e outra apenas pra ser xingada”, brinca Ana.

O problema surge quando o primeiro vagão sai vazio, enquanto os outros vão lotados de pessoas espremidas. “Uma criança de três anos vai lá sentada e nós, que trabalhamos o dia inteiro, vamos em pé”, reclama uma passageira. Outro homem, com a mão na boca, pergunta: “Dor de dente passa para o preferencial também?” Nããããããooo!

A plataforma enche em poucos minutos e o fluxo de trens não é capaz de carregar essa demanda. Cansados do trabalho, o que todos não desejam é encarar um vagão lotado a essa altura do dia. Por isso, muita gente tenta embarcar no conforto do preferencial mesmo sem estar dentro das especificações. “Você tem 59 anos, não pode passar”, Ana barra uma senhora. “Quando você tiver a minha idade, vai ver o que é bom, menina”, rebate a passageira, nervosa. Com a paciência dos psicólogos, Ana apenas sorri.

“Por favor, você pode me dar o laudo médico”, pede Ana a um homem com cara de doente. “Espera aí”. O rapaz, já meio amarelo, tira o papel da carteira. “Donizete? Mas isso é nome de mulher”, retruca a estagiária. “Como assim, moça? Você está me estranhando? Meu nome é esse mesmo!”. Ana olha para o homem, desconfiada. “Aaaaah, me desculpe, achei que fosse nome de mulher”. O rapaz doente passa para o preferencial, vai confortável até seu destino final. Todos riem.

Mais um dia na Luz
A Estação da Luz é um retrato da maior da cidade do Brasil. Talvez até do próprio País. É enorme e traz rostos e culturas diferentes, como disse o peruano Jaime. Sonhos e esperança também não lhe faltam, pois a Luz foi concebida justamente para demonstrar o desejo de uma vila que se via grande. Pela Estação, passam milhares de pessoas todos os dias, entre funcionários – são 150 no total – e gente que apenas passa, porque, afinal, são passageiros.

Muitos têm pressa: rumam ao trabalho ou a um chefe que não tolera atrasos. Outros carregam casamentos em sacolas, como o nordestino Amaro que, ao toque do celular, decide ir embora. Maridos traídos não carregam uma cruz, pois o peso da vassoura e da pá é ainda maior: então, observam o mundo, como o Seu Jesus. Aqueles que não veem com os olhos tem mãos feitas para a música: lá vai o pianista Dário Emiliano entrar no trem com a esposa grudada aos braços...

No saguão de entrada, Joãozinho da Gaita ganha R$ 2 de uma mulher que admira sua música. O rapaz, esbanjando felicidade, corre pelo espaço mostrando a nota a todos que encontra pela frente. Rogério Santos se vira: durante um longo período não tira os olhos do dinheiro de Joãozinho. Seu vício de craque fala mais alto que qualquer personagem de Clarice Lispector.

Dentro da Estação, Camila, a estagiária sorridente, passa correndo por uma plataforma. O horário de pico acabou e, finalmente, ela vai para casa. Ana também, mas antes ouve um poema de um passageiro, que se diz apaixonado por ela. “Você gosta de poesia?”, pergunta Ana. “Não”, ele responde. “Só gosto de você”.

A chuva começa forte. Um céu inteiro desaba no teto arredondado da Estação, causando um barulho que espanta até os pombos lá em cima. Como um trem, a energia elétrica vai embora. A escuridão toma conta de tudo, mas a Luz não se apaga nunca.

2 comentários:

Leandro disse...

Essa é uma reportagem que eu fiz para a disciplina de "Jornalismo Impresso" do 3° ano de Jornalismo, na São Judas.

Foi muito difícil fazer, escrever e tal Entrevistei dezenas de pessoas. É claro que nem todos entraram na matéria. É uma pena.

Espero que você tenha paciência de ler o texto inteiro.

Adeus.

Unknown disse...

Muito bom! Bem divertido e fácil de ler, mesmo que seja grande!

Provável que vá ser a única matéria realmente decente daquele jornal, huahuauhauha!

PS: Ótimo fio condutor!