quarta-feira, 23 de julho de 2008

Conta Outra

Ele foi cavando, cavando, cavando, pois sua profissão – coveiro – era cavar. Mas de repente, na distração do ofício que amava, percebeu que cavara demais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou, mas ninguém o escutou. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enlouqueceu de gritar, cansou de esbravejar; desistiu quando a noite chegou. Sentou-se no fundo da cova, desesperado: o que fazer para sair desse lugar horrendo?
Essa história que você acabou de ler foi contada para um número de aproximadamente quarenta crianças de três a sete anos, na unidade do Sesc Vila Mariana, em São Paulo. Elas, as crianças, passaram medo, gritaram, perguntaram, tentaram adivinhar o final, enfim, amaram a historinha.
(Ah, e você também quer saber o final da história, não é? Leia a matéria inteira que eu conto).
E não é apenas essa história que anda fazendo sucesso entre a molecada, mas diversas outras: o mercado de contações de histórias infantis chegou e conseguiu o seu lugar no coração dos pequenos.
Atualmente, o número de espaços que realizam este trabalho vem crescendo significativamente. Livrarias, bibliotecas, praças, escolas, entre outros. É o caso da livraria infanto-juvenil NoveSete, também no bairro da Vila Mariana, que realiza contações há sete meses. “Criamos esse projeto com o objetivo de alcançar uma integração maior entre as crianças, com o próprio espaço da livraria, com os livros, com este enorme universo literário”, afirma Gislene Gambini, proprietária do lugar.
As escolas públicas também se interessaram por passar aos seus alunos um pouco deste universo. “Recebemos diversos convites da Prefeitura de São Paulo para contar histórias, o que demonstra um interesse dos órgãos públicos de ampliar os horizontes culturais dos alunos mais carentes”, diz Fernanda Viacava, da Companhia Teatral Dedo de Prosa.

O que contar
Os temas são os mais variados, desde a relação entre as pessoas com o trabalho até contos populares de outros países, como o de Pedro Malazartes. “Tentamos diversificar, mas sempre tocamos a questão do vínculo entre as pessoas, as relações de amor, confiança.”, reflete Kiara Terra, contadora de histórias há oito anos.
Contos famosos, como o dos Três Porquinhos, geralmente não são bem aceitos pela criançada, pois todos já sabem a trama, os personagens, o final. “A criança quando ouve nossas histórias não quer saber da Chapeuzinho Vermelho. Essa ela ouve em casa, com os pais. O ideal é usar contos não muito conhecidos. Utilizar a cultura indígena, africana, européia”, diz Fernanda.
Histórias de terror, como a que você leu no início desta reportagem, também são sempre usadas. É uma forma de mostrar para as crianças com menor idade as diversas possibilidades que a vida pode ter; que nem tudo é um conto de fadas e que o final, às vezes, pode ser infeliz. “Uma vez, em uma história de terror, uma garotinha chegou a urinar nas calças de tanto medo. Mas isso foi importante; ela se reconheceu na história. Viu que, como ela, o personagem também sente medo, que é um sentimento normal.”, explica Fernanda.

Como contar
Um espaço livre, um banquinho (mas pode ser no chão mesmo), uma boa história, e o principal: crianças! Pronto, você também já pode contar uma história infantil. Não é preciso ter formação em artes cênicas para ser um bom contador: ter que ter o “jeito”, segundo os contadores profissionais, que vão desde psicólogos até pedagogos. “Basta apenas ter afinidade com os livros, saber se expressar bem, chamar a atenção das crianças”, explica Beatriz Pecci, consultora literária da livraria NoveSete.
A principal dificuldade de contar histórias às crianças, segundo os profissionais, é manter a atenção dos pequenos. Se a história for muito longa, a criança se perde, ou não presta a devida atenção. Por isso é sempre importante utilizar métodos que a façam entrar nas histórias: músicas, perguntas, interromper a história no meio e perguntar se todo mundo se recorda do início, são alguns truques dos contadores. “Se a criança não gostar da história, ela vai reclamar mesmo. Eles são muito sinceros”, diz Dinah Feldman, também da Companhia Dedo de Prosa.

Por que contar
A tradição de narrar histórias vem de longa data. Antigamente, antes do surgimento dos livros, as notícias eram passadas de boca a boca; não havia como propagar um fato sem utilizar a oralidade. Depois da invenção da prensa, tudo mudou. As histórias encontraram um meio de se perpetuar no tempo e no espaço, atingindo, assim, um maior número de pessoas.
Atualmente, com o surgimento das novas mídias, como a televisão e a internet, criou-se uma sociedade baseada, principalmente, na imagem. “Contar histórias quebra essa coisa de ter tudo ali na sua frente; as crianças imaginam as cenas, os personagens, as situações: nada está pronto para elas”, afirma Dinah. ”Resgatamos também a arte de sentar e simplesmente ouvir o outro, o que não é mais tão comum na nossa sociedade.”, diz.
As contações também ajudam a introduzir a criançada no mundo dos livros. “Às vezes, os pais nos procuram para indicarmos algumas obras para seus filhos”, diz Fernanda. “O que fazemos desperta nas crianças uma curiosidade por um mundo novo: o dos livros. Já é natural da criança querer conhecer tudo, mas quando ela ouve uma história, isso cresce de uma maneira fantástica. É muito gratificante”, completa.

(Agora que você chegou até o final desta reportagem, vou contar o desfecho da historinha do início):
Só um pouco depois da meia-noite é que vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça apareceu lá em cima. Era um bêbado. Perguntou o que havia: “O que é que há?”
O coveiro gritou: “tire-me daqui, por favor. Estou morrendo de frio”. Então o bêbado disse: “Coitado, tem toda razão de estar com frio. Alguém tirou a terra de cima de você, meu pobre mortinho”. E, pegando a pá, encheu-a de terra e pôs a cobri-lo cuidadosamente.

3 comentários:

Leandro disse...

Postei essa reportagem, pois deu muito trabalho para fazer e não quero que a professora seja a única a ler.

Enfim.

Adeus

Jefferson Sato disse...

Foi uma ótima reportagem, sem dúvidas!

Nao tenho o q comentar, ja tinha lido ela antes e falado com vc!

Tatiane disse...

Ao menos as crianças que ouvirem esses tipos de histórias vão ter uma idéia da realidade e não vão virar "pequenos demônios" (como diria o Daniel) achando que o mundo é belo e cor de rosa.

Ótima reportagem! :)

Beijo.